Insolação, de Felipe Hirsch e Daniela Thomas (Brasil, 2009)
por Fábio Andrade

Terra arrasada

A se ver por Insolação, Antonioni continua uma referência incontornável. Um dos principais conflitos do filme é, como em A Noite ou A Aventura, o embate entre figura e fundo, personagem e entorno, homem e cidade, as curvas do rosto e a dureza das linhas frias da arquitetura modernista. O sujeito é engolido pelo espaço na predominância dos planos gerais, que aqui se tornam ainda mais amplos pelo formato cinemascope. O apocalipse vem da arquitetura (lembremos da montagem de rostos e fachadas de prédios nos filmes de Antonioni, em uma clara relação de causa e efeito entre a arquitetura e a condição emocional daquelas pessoas), e se manifesta sobre ela: estão lá os prédios semi demolidos, as piscinas de lodo, os tapumes e os escombros que se acumulam em toda parte, como uma manifestação física da dissolução emocional daquelas personagens.

Mas os espaços demolidos se tornam, também, espaços a serem ocupados – como fica claro logo no começo, com as interrupções do monólogo de Paulo José pelo segurança, que diz que ele não poderá mais usar aquele espaço para se comunicar com o público. Esse conflito faz com que Insolação parta de Antonioni, mas chegue – pela ambientação – ao seu herdeiro mais direto no cinema atual: Tsai Ming-liang. Pois Felipe Hirsch e Daniela Thomas usam, aqui, diversas das mesmas estratégias de Tsai em Que Horas São Aí?, e principalmente O Sabor da Melancia (há, inclusive, um plano em uma ponte que lembra muito as composições de passarela desse filme). A andança zumbificada; o abraço ao simbolismo (os sintomas de insolação como metáfora clara para a chegada da paixão); as composições de extraordinária precisão geométrica; os espaços vazios e, principalmente, a oposição entre retas e círculos como tradução visual da dinâmica entre homens e mulheres – são todos elementos tirados do cinema de Tsai que, aqui, ganham um novo índice: o gosto pelo texto, pela fala como sequência de punchlines (algo coerente a um filme composto de esquetes, muitas vezes em plano único), pela possibilidade de se fazer poesia no silêncio do caos. Hirsch e Thomas têm uma saudável desinibição nessa abordagem que prefere o risco da afetação à omissão, e que por vezes gera frases ou diálogos realmente preciosos.

Todo esse rigor e entrega, porém, esbarram nos mesmos limites que a dupla já mostrava no teatro. Embora eles demonstrem um enorme talento de composição e de significação visual, além da fé louvável na escritura do texto, há também uma enorme dificuldade em se encontrar o tom dos atores para além de sua presença pantomímica (lembremos, aqui, de Avenida Dropsie). Não temos nem naturalização bastante para gerar uma estranheza mais forte nessa impostação, nem estilização suficiente para que essa estranheza seja absorvida pelo tom da própria encenação. Com isso, Insolação é um filme ironicamente glacial, que se perde um pouco no terreno pantanoso da palavra, flutuando no desconforto do entre-registros que, ao mesmo tempo em que parece buscar para si um terreno particularíssimo (é difícil pensar em filmes que lhe sejam realmente próximos na produção brasileira recente), é ainda travado por um claro receio de levar seu universo aos níveis de estilização que ele exige – algo até certo ponto natural em estréias, e que se percebe, por exemplo, nos primeiros filmes de Wes Anderson e Tim Burton.

Por conta disso, Insolação se sustenta muito na maneira como os diretores filmam a cidade, com predominância da frontalidade. O problema é que, em um filme que luta justamente pela preservação do homem frente à cidade derrubada, o fascínio por essa mesma geografia faz com que a briga seja perdida logo de partida. Se existe uma força maior na paixão do garoto Vladimir (Antonio Medeiros) por Liuba (Leandra Leal), é em grande medida por esta trama se dar principalmente em interiores que, mesmo em ruínas, nunca ganham em força expressiva dos rostos e gestos dos atores. Insolação é um filme de intenções admiráveis; um filme que compra as brigas certas, mas que parece perder quase todas elas. Ainda assim, é justamente a estranheza da frontalidade com que os diretores compram essas brigas que gera um inegável sopro de frescor – mesmo que ele seja de fato gelado e um tanto funério.

Janeiro de 2010

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