Intervalo Clandestino, de Eryk Rocha
(Brasil, 2006)
por Felipe Bragança
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Ainda que filmado entre 2000 e
2004, a assinatura final de Intervalo Clandestino é claramente
esta de 2005/2006, que se põe em diálogo direto com o consenso
midiático da desilusão política como mote do atual estado de coisas,
do caos institucional no país. O filme é um esforço de ensaio
sobre um certo sentido de mal-estar político que sobrevoa o imaginário
brasileiro hoje. Esse esforço de se chocar e dialogar diretamente
com um caldo emergencial de dilemas discursivos e a vontade de
fazer do filme um fluxo também sensorial de cinema dá a Intervalo
Clandestino uma graça do exagero e do risco, ausente em grande
parte da produção brasileira recente – principalmente se pensarmos
nos filmes “documentais”, geralmente atrelados a um sentido de
observação e/ou interação contemplativa de personagens.
Dentro desse esforço e desse risco de intervenção,
Intervalo Clandestino enfrenta o desafio de ser ao mesmo
tempo um crítico de um clichê audiovisual já saturado de “político”
e um esforçado agitador do que poderia haver de novo nesse palavreado
das ruas. O filme peca, porém, pelo mesmo excesso de vontade de
que se alimenta: construindo um fluxo pouco articulado de temas
e recorte, principalmente na disposição de seus corpos falantes,
às vezes como personagens, às vezes como fragmentos funcionais
de palavras. Se há construção de ritmo e fluidez física das imagens
(e faíscas de idéias e de inconformismo em entrelinhas), os jogos
de linguagem da edição às vezes aparecem mais como muletas de
linguagem para um pensamento (e um cinema-ensaio é pensamento),
que não consegue se desdobrar com naturalidade do que como política
imagética.
O experimentalismo gráfico por vezes disfarça,
mas não suplanta, a falta de rumo de parte de sua “narrativa”.
O uso dos depoimentos de Lula como eixo condutor, e reiterado
de diálogo e contraposição com as falas diversas, dá ao filme
uma curiosa aparência de “carta aberta ao presidente” – como uma
reclamação com endereço certo que não é exatamente o dos olhos
do espectador comum, mas o desse suposto lugar de poder que não
escuta e não vê o real, o tal “povo”. Dessa forma, uma possível
ruptura ou reformulação política por dentro da estética do filme
não se realiza: seu roteiro-discurso mantém a figura do presidente
Lula como ícone interlocutor e unívoco desse diálogo. As possibilidades
de reflexão política se fragilizam nessa binaridade (“poder executivo”
x “povo”), e o que podia ser um exercício estético de entusiasmo
discursivo acaba por demais repisando a terra no mesmo lugar,
reiterando sentidos de política que já estavam pautados pelo senso
comum dos telejornais diários: a descrença na política, a necessidade
das pessoas se organizarem para além das instituições oficiais,
etc.
Falta ao filme um mapeamento geométrico mais claro
de sua construção, falta ao sentido de política ali plantado,
uma clareza das formas de uso impositivo das feições das pessoas
nas ruas ou das vozes de intelectuais sem rosto que soam à “sabedoria
universalizada”. Esse Brasil totalizado no Rio de Janeiro, onde
a classe média aparece majoritariamente à beira do mar, não tem
seus critérios de construção audiovisual bem compartilhadas. E
essa unilateralidade aproxima o filme de um “programa eleitoral
gratuito”, ainda que de um partido que inexiste.
Há, sim, coragem e força na construção da insatisfação
como traço definidor e inerente à multidão, mas esse sentido não
consegue fazer do próprio filme um objeto expressivo de liberdade
de criação de outras formas de ação. Não à toa, depois de pular
de tópico em tópico com mais ou menos impacto, o filme se entrega
a 15 minutos finais que parecem não poder mais do que explorar
a beleza e o impacto gráfico de suas experimentações de linguagem,
revisando temas já vistos ao longo de sua projeção. Há um sentido
buscado de revolução sensível nessa “energização gráfica” do olhar,
isso é visível – mas parece não haver revolução possível enquanto
os elementos de linguagem, os nomes dados aos interlocutores e
sua dinâmica de articulação, forem os mesmos. Não haverá revolução
visual-política enquanto lançarmos olhos ao mesmo “povo” (muitas
vezes confundido com o “pobre”), ao mesmo “país”, ao mesmo “Brasil”,
aos mesmos planos de olhos e rostos que falam e reclamam para
uma câmera-poder que as organiza sob tópicos já visitados. Ainda
que essa função de esgotamento discursivo do já-visto seja, certamente,
um papel imagético-político a não ser ignorado.
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