Invictus (idem), de Clint Eastwood (EUA, 2009)
por Cléber Eduardo

Marketing do apaziguamento (ou conciliação)

Invictus não é sobre a Historia, assim maiúscula e fora da tela, mas sobre o apagamento dela. Não porque seja infiel aos fatos tais quais aconteceram, algo irrelevante aqui, mas porque articula sua história, assim minúscula e particular, para zerar o passado. E as tensões, contradições e forças dialéticas. No filme, o presidente Mandela, recém-eleito na apartada África do Sul, quer ficar de bem com os opositores brancos e, para apaziguar os ânimos quentes e ressentidos em seu país, apóia a seleção de rugby – cujo time é de branquelas, tem nome e uniforme que são símbolos do apartheid e possui apenas um negro no elenco. A primeira sequência sintetiza o espírito político do filme. De um lado, jogadores brancos de rugby. Do outro, negros jogando futebol. No meio, passa um carro com Mandela, saído da prisão. Os dois jogos param para ver sua passagem: os negros festejam; os brancos olham em silêncio. O treinador afirma que, naquele dia, o país inicia sua ruína. Invictus mostra o contrário dessa frase.

Nas últimas imagens do filme, com a união do país em torno do time nacional e branco de rugby, os negros mudarão de esporte. E os seguranças negros e brancos do presidente, postos para conviver pelo chefe da nação, deixam as oposições de lado. Tudo se encaminha para um grande abraço coletivo ao final. País unido. Branco e preto. A cultura branca assimilada pelos negros. Assim como o chá, segundo Mandela, a grande herança dos colonizadores ingleses. Mandela defende a assimilação da cultura dos opressores e dominadores. O presidente quer passar uma borracha no contexto anterior à sua eleição, mas, paradoxalmente, por meio de uma evidência do outro período. É sua forma de iniciar a construção de um “novo país” (obsessão de sua fala), porém com a manutenção dos velhos símbolos, porque assim agrada os brancos e promove pacto entre as diferenças. Nada de ressentimento ou vingança; sua liderança é pela conciliação. E o time de rugby, escolhido para promover essa integração entre as diferenças (e que até a sua intervenção é um bando de pernas de pau), torna-se seu xodó. O clímax será o hino nacional sul-africano na final da Copa do Mundo. Um ritual de compartilhamento entre brancos e negros, mas sempre a partir das referências dos brancos, que, por sua vez, pouco ou nada assimilam das referências dos negros – ao contrário do adversário da final, a Nova Zelândia, que ataca com uma dança maori.

A imagem mítica, sábia, superior e santificada de Mandela está longe da imagem de um presidente. É um mito. Abre a boca para proferir sempre alguma verdade quase transcendental sobre como lidar com dificuldades, além de ser o cara bacana que chama todos pelo nome. A mitificação permite ao filme mostrá-lo unicamente como um político preocupado apenas com o time de rugby. Nenhum outro problema o aflige. Ele precisa se afirmar pela conquista simbólica (mais que pelas diretas). Invictus ignora assim uma das marcas do cinema clássico: a superação de obstáculos e o confronto com forças contrárias na luta pelos objetivos. Em um contexto insinuado como uma panela de pressão, não há muitas pedras no meio do caminho durante a jornada rumo ao título e, quando ela aparece, está encarnada e reduzida na figura de um craque do time adversário, a Nova Zelândia, isso nos minutos finais de um filme com mais de duas horas. Essa ausência de conflitos na trajetória (não confundir dificuldades com conflitos), na prática, é a linguagem do apaziguamento de Mandela. Tanto filme quanto personagem driblam os obstáculos e a grande missão de presidente e seleção parece acontecer como se fosse inevitável e dependesse apenas da auto-estima dos jogadores e da liderança presidencial.

Mesmo com sua ausência de conflitos concretos e com sua narrativa de predestinação, que confirma expectativas e jamais desloca o percurso, Invictus exerce o poder de sedução com naturalidade e nenhuma vergonha de suas opções. Seu excesso de situações representativas, sua operação de significar tudo sem sutileza, sua quase pedagogia sobre como deve ser visto, não inviabiliza uma imersão imediata. Os símbolos passam a se somar e a se relacionar entre si sem deixar de gerarem uma vida de fato nessa convivência. No percurso recente de Eastwood, há menos de Menina de Ouro, seu outro filme em ambiente esportivo, e mais de A Conquista da Honra, sobre o qual escrevi em Cinética: “Na verdade, o front é uma frente mítica: nunca aparece como registro do filme, mas como imagem do personagem, seja sonho ou lembrança. E é justamente em torno de uma imagem específica, a de combatentes erguendo uma bandeira dos EUA em Iwo Jima, que o diretor irá se deter em sua complexa narrativa. O mito do front, do símbolo, da bandeira”.

A narrativa é menos esportiva que explicitamente politica, mas, se país e contexto são bem situados, com um personagem com modelo real e histórico, o posicionamento ideológico não se restringe à África do Sul. A trajetória da vítima que chega ao poder, podendo vingar-se de seus opressores, é uma matriz dramática longe de ser específica. Mandela nasce de uma matriz biográfica, mas para ser formatada dramaticamente, expandindo sua existência particular para uma existência simbólica, discursiva, que tem percurso narrativo a cumprir. Talvez uma das forças do filme esteja nessa consciência sobre o poder político da imagem e também na consciência do próprio filme em relação a suas imagens. Se Mandela age nos bastidores, longe das câmeras, age, na verdade, para gerar imagens. Para ocupar espaço na TV. Mandela chega a dizer, quando vê uma reportagem sobre o time de rugby em um gueto de negros, que aquela imagem vale mil discursos. Clichê assim, mas empregado como o coração de todas as situações. A nação como uma construção visual e simbólica; a História como uma narrativa da qual o presidente quer ser protagonista e autor.

Corrigindo a primeira frase, Invictus é sim sobre a História. Porque esta se faz de apaziguamentos, mitos, apagamentos e organizações sintéticas. Portanto, não é sobre a História como passado, mas sobre como ela é feita. Seus detratores mais agressivos talvez tenham se empenhado em ignorar o óbvio, mas a relação de Mandela com o rugby é pautada menos pelos clichês e mais pela consciência política do cineasta em relação ao próprio cinema, sem expor nenhuma culpa com esse poder, mas sim assumida responsabilidade pelas imagens. Uma atitude de cineasta consciente de seu lugar no mundo.

Fevereiro de 2010

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