in loco - cobertura do Festival do Rio

Iraque, Ripstein, irmãos canadenses
por Eduardo Valente

No ritmo alucinante da cobertura de um festival de cinema, o crítico precisa eleger alguns filmes sobre os quais se debruça com mais atenção, mas também compor um conjunto de observações mais curtas e pontuais sobre outros filmes – se quiser passar para o leitor impressões sobre o todo do que vem assistindo. É isso que começarei a fazer a partir daqui, complementando as críticas individuais dos filmes que continuaremos colocando no ar.

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Na Sombra das Palmeiras do Iraque (In The Shadows of the Palms – Iraq), de Wayne Coles-Janess (Austrália, 2005) – Fronteiras

Dentro do Festival do Rio, as mostras Fronteiras e Dox muitas vezes ficam relegadas a um segundo plano pelos cinéfilos, por apresentarem documentários várias vezes despreocupados de questões mais diretamente ligadas à linguagem ou autoria cinematográfica, em alguns casos trabalhos extremamente televisivos e/ou jornalísticos na forma – e que, por isso, mesmo os interessados nos temas preferem deixar para futuras exibições na TV. Dentro destes casos, este trabalho australiano se coloca num meio termo uma vez que, embora um tanto esquemático em seu formato, tem dois atrativos inegáveis: de um lado, sua produção absolutamente independente e quase individual, onde o diretor visitou o Iraque antes e depois da invasão americana e documentou a vida nas ruas de Bagdá nas duas instâncias; de outro, as imagens que ele consegue captar – em parte pela intimidade conseguida com seus objetos de entrevista (onde chama a atenção a viagem num veículo militar americano), em parte pela pesquisa de imagens da TV iraquiana. Se por um lado seu viés principal (o da humanização dos “alvos móveis” que se tornaram os iraquianos) possui um quê de óbvio, e um outro tanto de “preaching to the converted” (ou seja: só se comoverá com a “humanidade” dos iraquianos os que já condenam a guerra), por outro é importante reconhecer que, nas conversas com os iraquianos, o diretor revela uma série de personagens que, em geral, não tínhamos visto ainda em nenhuma cobertura do conflito. Coles-Janess, às vezes até com um bem-vindo idealismo, inegavelmente consegue comover o espectador com o desvendamento do grupo de debates no café, com o professor de luta-livre que vira soldado (aliás, desaparecido), com o pai palestino de filha iraquiana recém-nascida. Para quem acredite que no Iraque estão se moldando alguns dos conflitos mais duradouros do futuro, é indispensável ver o filme para testemunhar as raízes deste momento.

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Carnaval de Sodoma (idem), de Arturo Ripstein (México, 2006) – Première Latina

O novo filme do veterano e importante cineasta mexicano faz sua estréia mundial no Festival do Rio – o que já é visto com alguns como um sinal um tanto preocupante, tendo em vista a visibilidade que o diretor tem nos festivais internacionais (competiu três vezes em Cannes, por exemplo), o que credenciaria seus filmes, a princípio, para uma estréia num destes maiores (ainda mais com Veneza ainda tão próximo). Se não cabe ao crítico julgar este tipo de elocubração, o que se pode atestar é que o filme está longe de ser um dos grandes de Ripstein. Tanto na extrema estilização do seu jogo estético (fotografia e direção de arte em especial), quanto no tom de alegoria teatralizada do seu enredo, o filme lembra muito o Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra. Como neste, a sensação que fica ao final é a de um cinema um tanto quanto engessado por seus conceitos, de respiração pouco presente no contexto do cinema contemporâneo.

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C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y.), de Jean-Marc Vallée (Canadá, 2005) – Foco Canadá

Depois de uma primeira sequência que parece indicar uma certa tendência ao humor “esperto” e modernoso, C.R.A.Z.Y. conquista o espectador com um inesperado ritmo mais ralentado e um cuidadoso trabalho com a relação entre os personagens, tanto através de um trabalho de atores muito destacado, quanto pela delicadeza na composição de cada personagem (onde o filme faz uma feliz opção por desenvolver mais alguns deles – especialmente o pai – e deixar outros mais como tipos – o irmão atleta, o irmão intelecual, etc). Sua atenção aos detalhes (o jogo dos olhares entre os atores, a reconstituição de época absolutamente discreta e pouco auto-centrada) diferencia o filme e dá frescor a uma estrutura já mais do que conhecida – a do filme de conflito de gerações. Infelizmente, da metade para o final os tons melodramáticos começam a ganhar peso excessivo no filme, que com isso perde um pouco da leveza que o faz quase flutuar na primeira hora. E, pior ainda, quando o protagonista se exila em Jerusalém, o filme perde de vez o norte – uma vez que o que dava real força ao filme era as relações familiares, com o isolamento do personagem e sua individualização de conflitos, ele se revela bem menos interesse do que como parte de um grupo. Se com isso o filme perde um pouco do seu encanto, nem assim pode ser considerado desinteressante.

 


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