Homem de Ferro (Iron Man), de Jon Favreau (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima

O cinismo dos bêbados

A tendência de se fazer pontes com dados externos a um filme é quase inevitável nas adaptações de quadrinhos, a vertente que mais fomenta discussões e cobranças de fãs e “especialistas” sobre fidelidades entre original e sua respectiva versão cinematográfica. Uma cobrança ignóbil, nada útil para o destrinche de um filme, uma vez que a atenção desvia-se para itens que nada tem a ver com o objeto em si, à parte até mesmo do material de making of, que pelo menos diz respeito à feitura do filme. No caso de Homem de Ferro, entretanto, esse “material extra-filme” tem maior importância, instrumentando leituras mais afiadas sobre este que é, como obra cinematográfica, um longa bastante genérico – sobretudo, se comparado a fitas como a trilogia Homem-Aranha, Hulk e os Batman de Tim Burton.

O grande centro gravitacional de Homem de Ferro está na presença do ator protagonista. A quem esteve alheio ao que estava na baia da imprensa, é quase irrelevante a presença de Robert Downey Jr, intérprete talentoso que optou pelas alamedas paralelas, aquelas que não rendem paetês morais à imagem de um astro. Pelo contrário, Robert rompeu com o modelo e fez o que bem entendeu, sobretudo mergulhar alucinada e perigosamente nas drogas, bebedeiras e afins, inclusive fazendo constantes visitas ao xilindró. Downey Jr traçou percurso em outra estrada que não a de um Tom Hanks, por exemplo, que participou de um punhado de filmes alinhados à história oficial americana (O Resgate do Soldado Ryan, Apollo 13, Band of Brothers). Downey Jr levou seu corpo e imagem ao limite da vida, e sua presença num filme tão domesticado como este Homem de Ferro cria um pequeno grande abalo sísmico.

Domesticado porque a criadora do Homem de Ferro dos gibis, a editora Marvel, ingressou pioneiramente na produção cinematográfica justamente para ter controle total sobre o que seria vertido do papel para a tela. E é esse controle que sacrifica boa parte do filme, porque uma vez que o diretor Jon Favreau não seja nada além de um técnico contratado, não traz nenhuma construção imagética muito diferente do que podemos ver em qualquer seriado de ação televisivo infanto-juvenil. A montagem, por exemplo, segue, em ritmo monocórdio, a nova cartilha do cinema de ação que opta pelas imagens-fragmento – não só os planos são curtos como a soma deles não decupa o espaço, tampouco mostra algo sobre esse mesmo espaço e os sujeitos que agem dentro dele; o que é bastante fundamental neste gênero. A dramaturgia sai bastante afetada dessa montagem que impede seqüências mais longas, algo gravíssimo para um filme que conta a história de um industrial bélico que, após ser capturado por guerrilheiros afegãos, cria a tal armadura super-heróica e volta ao seu país determinado a reformar sua postura com o mundo, trocando o assassínio massificado-industrial pela salvaguarda de vidas.

Ele é Tony Stark, ou Robert Downey Jr, e não é à toa que a voz oficial da produção, a Marvel (bem representada por Jon Favreau), afirme que a escolha do ator foi calculada sobretudo para ele dar conta da complexidade de Stark – um dos raros super-heróis quarentões e que sofre uma tremenda mudança de caráter, freando o álcool e até mesmo largando o mulherio que era bastante freqüente em seus lençóis. O cinismo oficial faz par com o coração mecânico que o homem tem de usar para permanecer vivo, uma imagem aberta às mais variadas metáforas, o que francamente não interessa aqui, pois a “interpretação” não poderá ser menos arbitrária.

Aliás, o filme porta todo o manancial professado pelo sub-gênero de HQs cinematográficos, destas metáforas a várias outras questões, como a transformação do personagem, gênese do herói, o vilão (aqui, mais uma citação para os “nerds” de quadrinhos do que uma construção, mesmo tendo-se à mão uma ótima presença de Jeff Bridges, que faz o sócio traidor de Stark, e nada muito além), o desfile tecnológico dos efeitos especiais da grande indústria do cinema e a mensagem “subliminar-de-cartela” (termo que uso aqui para definir um discurso que está no pano de fundo mas que indica didaticamente a correspondência com um contexto extra-filme, que é o do mundo de hoje). Mesmo en passant, captamos a mensagem política exposta por entre os planos, sobretudo um discurso anti-bélico que nega a si mesmo ao arregalar os olhos para o espalhafato maquinal, para as bombas e dardos metálicos, o alvo apontado para vilões do “lado de lá” (Afeganistão) e a tomada de consciência de que aquelas bombas matam e que Stark e seu país precisam intervir para a paz mundial, ou pelo menos que ele precisa “defender” o povo. Não à toa, a identidade do herói é logo revelada, porque hoje, com invasões a países ganhando viés de assistencialismo político, a idéia de um homem de ferro, couraça inquebrantável, seria um desejo consensual. Temos um empresário fazendo justiça aos quatro cantos, ou seja, a força industrial-produtiva socorrendo o planeta. Ou seja, mais letal, impossível.

É na correria das cenas (não necessariamente dos planos, mas sim no não desenvolvimento de certas situações dramáticas) e na profusão de informação zapeada que o filme professa um discurso cínico naquilo que ele quer aparentar ser cinema. O humor, por exemplo, talvez seja o truque mais reluzente. Daí que, de fato, é Robert Downey Jr. quem deixa claro o jogo de cena e do filme como um todo. Ali está um ator de corpo inteiro, 43 anos demonstrados por uma geografia de rugas bastante inesquecível, num over acting que enevoa um pouco, mas não esconde o jogo. Talvez por isso seja ainda mais bizarro, senão cínico, o filme iniciar-se no momento em que Tony Stark é capturado pelos vilões afegãos para com menos de 10 minutos de projeção retroceder 36 horas do tempo da ação para, aí finalmente, seguir linearmente na cronologia diegética. Pretende-se os antecedentes do personagem, mas o que fica expresso na tela é que a primeira aparição de Tony Stark nem é ele mas sim um belo copo de uísque, segurado por ele, que está todo rei, de óculos escuros, num carro militar. É o único momento que o filme de Jon Favreau é honesto conosco – ao mostrar a suculência do scotch, está dado o conselho: se alguém bebeu antes de dirigir (um filme), beba você também antes de encarar o respectivo.

Maio de 2008

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