Isto Não é
um Filme (In Film Nist),
de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb (Irã, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira
Entre
o conceito e a realidade
O conteúdo da empreitada
de Panahi/Mirtahmasb escapa os limites da obra e remete (impõe,
canaliza) às condições nas quais ela foi
realizada: na prisão domiciliar do diretor mundialmente
aclamado por filmes como Balão Branco, O Círculo
e O Espelho, esperando um veredicto contra a punição
de vinte anos que o proíbe de exercer sua profissão.
É impossível dissociar Isto Não é
um Filme de sua origem, do drama real de sua prática.
As conotações políticas da obra são
imediatamente visíveis, mas nada disto é feito através
de uma catarse ou purgação. Nada é feito
com gritos. Sobretudo, nada é feito só por causa
das palavras repetidas ou das ideias que estão expostas
abertamente. O que difere Isto Não é um Filme
de um punhado de outros filmes medíocres sobre ditaduras
e temas semelhantes é o complexo mecanismo cinematográfico
pelo qual opera.
A estratégia artística de Panahi
sempre operou por metáforas. Uma menina que perde o dinheiro
num bueiro deve significar muito mais do que simplesmente isto;
um grupo de mulheres que quer assistir um jogo de futebol também;
do mesmo modo, uma adolescente que é proibida pelo pai
de ingressar na escola de artes se torna a alegoria de um sistema
opressivo no Irã contemporâneo. À sua maneira,
são gatilhos para se tratar de contradições
muito maiores do que os pequenos dramas que vemos na tela. Mas
uma tendência oposta também se contrapõe à
inicial: a metáfora deve se tornar viva - o que é
um esquema abstrato precisa ganhar carne e osso, e neste ganho,
revelar uma forma de realidade, uma percepção do
banal indecifrável, presente em cada acontecimento. A primeira
tendência está ligada às palavras. A segunda,
às imagens. É por causa desta dupla tendência
que um roteiro não se resolve sendo narrado. Por isto que
ele precisa ser filmado. O procedimento é semelhante àquele
que Rancière descreve em Brecht: “É preciso
que os assuntos de couve-flor de Arturo Ui sejam mais do que assuntos
de couve-flor, que eles sejam a alegoria transparente da realidade
econômica que sustenta o poder nazista. Mas também
é preciso, ao inverso, que sejam apenas assuntos de couve-flor,
uma realidade estúpida, insensata, que deve suscitar aquele
sentimento de absurdo que nutre ao mesmo tempo o puro prazer lúdico
e o sentimento do intolerável.”
É
por este viés que Isto Não é um Filme
se aproxima das obras de Magritte, principalmente de quadros como
Os Passeios de Euclides ou A Condição
Humana. A ordem desta aproximação não
está apenas na brincadeira do título, mas também
na estrutura de composição por abismo (o quadro
dentro do quadro / o filme dentro do filme) e a contraposição
entre uma tendência conceptualista e outra realista que
se encontra à base de todos os principais expoentes do
neo-realismo iraniano. Sob o olhar de Panahi, esta contraposição
também ganha a notória expressão de uma relação
entre o interior de seu apartamento e um mundo exterior que lhe
é inacessível por causa da dupla constrição
(o regime de prisão domiciliar e a impossibilidade de filmar).
O grande drama de Isto Não é um Filme é
que esta relação esteja temporariamente interrompida,
proibida. Por um lado, Panahi está insatisfeito em documentar
seu cotidiano (sua iguana, seus chás, os acontecimentos
banais de sua vida) sem lhes dar motivação, sem
lhes criar sentido. Então, convida um documentarista e
resolve se tornar ator. Começa a ler um roteiro seu que
fora censurado, mas chora ao tentar utilizar-se de abstrações
geométricas para explicá-lo em sua sala de estar.
Também está insatisfeito em documentar uma expressão
puramente conceitual. Em vão, da janela, fica a observar
sua cidade no dia da festa dos fogos de artifício. Filma-a
com uma câmera de celular.
A
melancolia que deriva do filme não é resultado da
impossibilidade de filmar, pois ele tem as ferramentas para esta
empreitada. Tampouco é da impossibilidade de elaborar metáforas
e criar discursos. O problema é que nenhuma das duas coisas
o satisfaz sem que haja o encontro entre ambas, sem que a estrutura
narrativa se contorça em direção à
realidade do mundo e vice-versa. E este encontro é a experiência
de uma liberdade plena. É por esta estratégia de
dramaturgia que Panahi/Mirtahmasb conseguem expressar um conteúdo
artístico e torná-lo o correlativo direto de um
fato político.
O encontro tão implorado está reservado aos minutos finais de Isto Não é o Filme, e ele incide sobre nós com um baque tremendo, na melhor sequência que Panahi alguma vez dirigiu. Não sabemos se é por um acaso ou por uma premeditação, mas um coletor de lixo aparece à sua porta e os dois travam diálogo que lembra muito os diálogos de Kiarostami. Do roteiro que narrara anteriormente em sua sala de estar, protagonizado por uma estudante de arte, a realidade oferta a Panahi um jovem que, por mais que suas diferenças em relação à personagem sejam amplas, curiosamente é também um estudante de arte (é isto que o seduz? É isto que o faz descer com ele no elevador?). A realidade bate à sua porta e ele a persegue, a acompanha pelo prédio até o exterior, e o próprio filme se transforma repentinamente de acordo com a necessidade do diretor em deixar-se levar por esta brecha onde se entrevê um traço do mundo. Enfim, Panahi o persegue até sair de casa pela primeira vez, mesmo ouvindo as contraindicações do coletor de lixo. Escondendo-se, e obcecado pela imagem que pode obter, continua a filmá-lo até que, à distância, perdemos de vista o jovem atrás de uma grade de ferro. Ao fundo, labaredas e fogos de artifício celebram à revelia da proibição do governo iraniano, transformando em protesto uma comemoração. Esta é possivelmente a imagem perfeita do enclausuramento e da solidão, da distância da qual Isto Não é um Filme padece. A distância entre o sujeito e o mundo, entre o conceito e a imagem. A tensão entre a arte e a realidade.
Maio de 2012
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