Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima),
de Clint Eastwood (EUA, 2006)
por Cléber Eduardo

Dois lados de uma soma dialética

Há uma imagem-símbolo nuclear em A Conquista da Honra, em torno da qual se constrói o marketing da colaboração civil para a vitória militar, a legitimação da guerra como defesa dos ideais americanos e o heroísmo  pé-de-chinelo de três jovens transformados em fantoches nacionais. Eles fazem um teatrinho comprometido com o espetáculo da guerra, não sem mal estar por serem condecorados e tratados como “símbolos do espírito vitorioso”, operação na qual a nação é incorporada à imagem dos indivíduos, até reduzi-los a emblemas ou alçá-los ao posto de mitos, como a própria nação em sentido bastante amplo (uma construção imaginária, sobretudo, como escreveu Benedict Anderson).

Mas por que raios, numa de Cartas de Iwo Jima, começamos por A Conquista da Honra? Seria uma forma de insinuar que um depende do outro para encontrar sentido? Não. Essa aproximação visa apenas salientar nesses dois filmes de Clint Eastwood uma complementaridade feita de oposições. Se há uma tradição em construção no primeiro filme, visando a afirmação de uma nação soberana e difusora de determinadores valores, essa tradição já está incutida na obra-irmã, a ponto de determinar uma estratégia de morte (nem de luta, exatamente). Diferenças entre países: um novo, outro antigo. A Conquista da Honra trabalha no processo de esvaziamento, ou de crise da dignidade, do soldado quando manuseado como massa de modelar pela retórica do poder institucional (uma retórica pop porque dentro de uma lógica do espetáculo e da repetição incumbida de atenuar as rachaduras e o mal estar). Cartas de Iwo Jima tratará justamente de um processo inverso, ou seja, da construção de uma dignidade possível na derrota, levada a cabo de formas diferentes, ora com maior espaço para as decisões pessoais (suicídios, rendições), ora reproduzindo  a ideologia oficial (morrer pelo Japão, pelo exército imperial, pelo orgulho de uma tradição).

No enfoque sobre os americanos que invadem a ilha de Iwo Jima, na II Guerra Mundial, estavam em jogo os sustentáculos do discurso midiático. Mostra-se toda a ressaca da imagem da vitória. Já na abordagem sobre a experiência japonesa no mesmo conflito o contexto da experiência só será trazido à superfície pela arqueologia. É a escavação nas cavernas onde foram escondidos os relatos/cartas que permite a construção de uma visão de quem não ficou para contar a história. Se A Conquista da Honra trabalha na saturação de uma imagem-mito-marketing, Cartas de Iwo Jima opera nos subterrâneos dessa imagem histórica mitificante. De uma forma ou de outra, estamos no departamento de Eastwood, sempre às voltas com decodificações do passado, seja em As Pontes de Madison, em Sobre Meninos e Lobos, em Menina de Ouro.

Cartas de Iwo Jima começa situando o espectador no palco do confronto (a ilha). Vemos primeiro tomadas gerais, depois mais fechadas, com imagens de armas, da paisagem árida, vazia, antes de chegada de um grupo com uniformes brancos, todos de capacete, caracterizados como cientistas em busca de rastros do passado. Após essa introdução, a narrativa recua no tempo, sem ser acionada pela memória de ninguém (como em A Conquista da Honra), apenas pela memória do próprio filme. Haverá um ou outro flashback sobre momentos de dois soldados e de um oficial, mas o importante mesmo é a experiência no front, cujas carências e sacrifícios (falta de água, munição e comida, somada às diarréias e enjôos) incutem a certeza ou a intuição, dependendo do personagem, de que resistir, em última instância, será uma atitude em nome da honra, não da sobrevivência.

Não demora para vermos a divisão no comando em matéria de estratégias. Já no primeiro diálogo, a ilha é amaldiçoada, e o patriotismo exibe fraturas. A batalha está perdida antes mesmo do início do filme. Como manter honra e dignidade sem armas, sem água, sem convicção na própria razão de se estar ali? Como morrer em nome de um país que, por razões da guerra, deu as costas para seus guerreiros, condenando-os, mesmo que por força das circunstâncias, à espera da morte pelo inimigo? Em uma outra seqüência, entre o ex-atleta olímpico (Ryo Kase) e o comandante sóbrio, Kuribayashi (Ken Watanabe), que sabe de sua responsabilidade para com o grupo e com a idéia motivadora da ação (traço comum aos protagonistas de Eastwood), lamenta-se a guerra tecnológica, que substituiu o confronto em cima dos cavalos, olhando no olho do inimigo (um lamento em parte parecido com o de Cowboys do Espaço). Na guerra moderna, mata-se sem se ver o outro (como destacou Paul Virilio em “Guerra e Cinema”).

A procura da sensação do “estar lá”, mais forte aqui que em A Conquista da Honra, será uma das forças do filme, com investimento no som do mar ao fundo, nas imagens do solo seco (salientado pela imagem quase sem cor e cheia de contraste), na ambientação nas galerias subterrâneas (na penumbra), assim como no impacto da morte, dos corpos decepados, do sangue esguichando. A guerra se faz mais presente, porque, antes de ser simbólica e traumática (como vemos no começo de A Conquista da Honra, por meio de sonhos e do ritual comemorativo), ela é uma guerra de fato. Não haverá espaço para efeitos posteriores. Eles são imediatos.

Os testemunhos escritos-verbalizados dos personagens-narradores só serão encontrados ao final da guerra em Cartas de Iwo Jima. E filmar esse contraponto (ou esse contracampo) não deixa de ser uma ação, mais flexível, em consonância com a posição de Godard em Nossa Música, no sentido de que as narrativas são História (não apenas histórias). Povos sem narradores são povos cujos conflitos são formatados pelos vencedores. Eastwood não acredita, porém, que apenas os vencidos, e ninguém mais além deles, possam narrar suas versões: existem as identidades de origem e as identidades de empréstimo, como salientam Robert Stam e Ella Shohat no livro “Crítica da Imagem Eurocêntrica”. Se um americano filma a derrota dos japoneses, isso não o impede de se impregnar da visão alheia.

No entanto, seria uma ingenuidade tomar Cartas de Iwo Jima, apenas por conta de sua abordagem dos derrotados, como um filme japonês, ou como um filme com a visão dos japoneses (e não apenas “sobre” os japoneses). E isso está na própria lógica diegética, que, ao contrário de A Conquista da Honra em relação aos soldados inimigos nipônicos, dá voz e imagem aos adversários americanos, não sem inserir um olhar crítico para suas ações (como a execução dos prisioneiros). Se a instância narradora era flexível em A Conquista da Honra, com a visão tanto de caças aéreos quanto de japoneses dentro das cavernas (sem haver pilotos de caças ou japoneses entre os personagens), agora veremos imagens e visões dos invasores. Essa opção por colocar a câmera dos dois lados, sem nem de longe chegar a um movimento dialético em si mesmo, parece objetivar uma visão para além dos lados em confronto. É nessa operação de mise-en-scène, aparentemente pouco rigorosa com a lógica narrativa, que o diretor constrói seu posicionamento, que não é nem dos americanos em A Conquista da Honra, nem o dos japoneses em Cartas de Iwo Jima, mas o de Eastwood para a soma dos dois enfoques. E é nessa soma, na verdade, que surge a dialética.

 


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