J. Edgar, de
Clint Eastwood (EUA, 2011)
por Luiz Soares Júnior
Ariadne, o monstro apenas se defendeu!
“Each man kills the thing he loves”
Oscar Wilde, “The Ballad of Reading Gaol” “O estado de exceção
revela da forma mais clara a essência da autoridade do Estado.
É aí que a divisão se separa da norma jurídica
e – para formulá-lo paradoxalmente – a autoridade
mostra que não tem necessidade do Direito para criar Direito...
A exceção é mais interessante que o caso
normal. O caso normal não prova nada, a exceção
prova tudo; ela apenas confirma a regra: em realidade, a regra
só vive através da exceção”.
Carl Schmitt, “Da ditadura”
“Se o desaparecimento de um
desejo originário do teatro da consciência é
chamado recalque, toda sublimação é um recalque,
mas que deu certo: através de uma substituição
de objetos de desejo, o original torna-se supérfluo”
Otto Fenichel
Larry
Cohen tem um filme tenebroso sobre gângsteres: The Private
Files of Edgar Hoover. É um de seus filmes mais hardcore,
porque é sobre o Mal absoluto – o Mal no poder, o
Mal na História. Hoover foi como o SA Ernst Röhm dos
grandes gângsteres do século XX. Dos mais maniacamente
eficientes, pelo menos. O filme de Eastwood, a princípio,
parece encarecer esta dimensão “prático-inerte”
do poder, com sua decupagem taquigráfica e vertiginosa
variação de escalas: a sua câmera inventaria
o espaço e os corpos com a mesma diligente aplicação
com que Hoover persegue identidades e reputações;
e, talvez à imagem e semelhança do personagem, busque
reter (atenção ao verbo!, terá um
destino fecundo neste texto) das presenças apenas seus
signos, seu rastro, uma silhueta de tudo o que lhe aparece.
A princípio...
Mas com um propósito outro: em sua incandescente e sincopada trajetória, ela nos apresenta o documento oficial, o testemunho canônico, o atestado “carimbado” – o filme é “ditado” e encenado por Hoover, em voz-off – como um processo, um vir-a-ser (ou por-vir?). Se Hoover está interessado em pintar para a posteridade a hagiografia de um pater famílias da Nação, Eastwood está visivelmente excitado em des-cobrir no plano lusco-fusco de sua auto-biografia pontos em que a taciturnidade do relato monocórdico de Hoover é modulada, enviesada, entrechocada por elementos de dissonância introduzidos pelo plano. A câmera se empenha metodicamente em ampliar o quadro expositivo que a narrativa de Hoover tenta verticalizar, na descrição de sua escalada de postos, escalada de métodos, escalada de valores, enfim: do horizonte de fins que ele (não importando quais meios) determinou-se a atingir.
Embora pareça-nos um personagem com um espectro de visão
considerável – como todo paranóico aliás,
que parece habitar um espaço ubíquo, semeado de
olhares por todos os lados – Hoover é cego para o
“em torno”. Ele vive apenas para o seu fantasma –
e os planos de detalhe, centrados em cacoetes, se encarregam de
no-los revelar. A câmera, na contramão da hipermetropia
do personagem, olha em torno, presta uma atenção
desmedida à alteridade que cintila aqui e ali, crispa-se
e distende-se.Por
exemplo, na ênfase em um gesto casual, alheio ao dialogismo
do campo e contracampo, diferindo os encontros oficiais
em flagrantes de intimidade – como quando Eastwood nos mostra,
durante uma entrevista com o chefe, o agente Smith agachar-se
para guardar o bloco de notas em que transcrevera o diálogo,
ou na silhueta que assombra a janela do escritório; nas
plongées (o encontro com Robert Kennedy, a ida à
Biblioteca com a futura secretária, Mrs. Helen Gandy),
que “situam” e achatam o personagem no canyon do espaço,
pulverizando-o, transformando-o no objeto parcial a que reduzira
a vida dos outros. O relato também é interceptado
pela ênfase dedicada pela câmera aos olhares
dos que o julgam, e assim distendem o seu ponto
de vista em nosso ponto de fuga por outros stream
of consciousness – sua sobrinha na mesa com a mãe,
o olhar de bonomia irônica do homem com quem viveria a vida
inteira – embora sob a Morte de uma privacidade impenetrável
–, e claro, a indefectível secretária, híbrido
de cúmplice, escada e Valkíria castrada pequeno-burguesa.
Se, pelo contrário, as cenas com a mãe são
das mais frágeis do filme, é porque ela não
é propriamente um alter ego (um Outro, alguém que
a câmera possa opor à auto-suficiência blindada
da narrativa), mas um mero duplo de Hoover, como vai
se revelar na genial seqüência do travesti ao espelho.
Se o filme nos põe sob o foco aural de
Hoover, este está constantemente sob a mira da câmera,
contracampo interpelado pelo campo do mundo: a entrevista com
o novo superintendente e o encontro com o aviador Lindenberg são
ilustrações mais diretas deste confronto. Mas há
uma cena emblemática deste “Hoover olhado de volta
pelo mundo”, um olhar não mais deflagrado pelo ponto
de vista de outros personagens, pela mediação diegética.
É quando do assalto pela quadrilha de Hoover ao ninho de
subversivos. Na pista de seus homens, que espancam um anarquista
nos fundos da casa, Hoover segue com uma arma em punho (que nunca
poderia usar) por um corredor envolto na semi-obscuridade. Eastwood
nos dá planos de vista subjetivos da cena bestial que se
passa mais adiante, e nos sugere, pelo crescendo do ritmo do corte
e a distância amedrontada do personagem para a câmera,
que o mundo está desabando sob os pés do super-homem
do estado de exceção, e a máscara ameaça
cair (ou colar à cara). Mas o que me parece decisivo nesta
sequência primorosa é o zoom sobre a cara
de Hoover, que se segue ao plano dos agentes pisando na cabeça
do subversivo. É como se a câmera materializasse
um olhar agressivo – ou um soco – do mundo sobre o
personagem, como se o que desde sempre este temesse enfim se desse:
o confronto físico com o mundo real, de um corpo real contra
o corpo do mundo, de uma superfície que sangra a uma superfície
de incomensurável resistência, que a outra (finita)
jamais poderá vencer.
A paranóia aqui faz-se carne. Este zoom é
a concentração em enésima potência
de todos os outros olhares contra os quais Hoover, inútil
e infantilmente, tenta opor a fleuma de sua casmurrice canastrona,
de sua caganeira de ser mascarada de plenipotência
de saber, de sua impossibilidade em ser uma experiência
que ele disfarça o quanto pode (tadinho!), ao virar o arquivista
kafkiano da experiência e do desejo dos outros. Neste face
a face, Eastwood exorciza parte de uma carreira colocada sob o
signo do cinema do corpo – mas também das paixões
tristes e dos colóquios trágicômicos, do Pai
irrecuperável e das pastorais com angina pectoris,
da expiação que o amor pode carregar à socapa,
em seu rastro de primavera envenenada. Em Hoover, fiquemos com
o luto pelo cinema do corpo: esta é a prova de força
com um fantasma, com alguém que persiste em fechar os olhos
para o mundo, e prefere decalcá-lo segundo o molde de seus
demônios, sopesá-lo e reproduzi-lo com o auxílio
dos signos – impressões digitais e a parafernália
de rastros-mediações que o afastarão para
sempre do destino de viver e ser vivido.
A taquigrafia da câmera de Eastwood na verdade
é o tropo; um engodo retórico. Como a metáfora,
a sinédoque ou a perífrase. A crônica-inventário,
como já devem ter depreendido, é um estudo de
caso. Psicopatológico. Mesmo que em escala épica
(scope, “gesta” que se estende por espaços
e tempos os mais diversos – em ordens igualmente variadas
–, plongées telescópicas a granel ). Mas o
nazismo nos ensinou que se delira também em Estado (Nação
ou não), povo, Zeitgeist, Mundo. Juntos. Todos. Não
apenas punheteiros, mas comunitariamente – epocal, mundanamente.
J. Edgar é não uma escrita taquigráfica
ou um mausoléu historiográfico - ou antes: também
é isso. Mas sobretudo o filme resguarda uma operação
(de guerra) estenográfica. A estenografia consiste num
tipo particular da criptologia; ela não elide o significado,
mas a própria presença (a existência)
da mensagem. Poe deve ter usado um princípio deste em “A
Carta Roubada”; mas, como sempre em Poe, com insights
cognitivos e ontológicos bem mais abissais. Aqui, fiquemos
na superfície, no que já devem ter adivinhado com
vantagem: a mensagem oculta – sua presença –
é a seguinte: onde lerem Política, decifrem: Medo.
Onde suspeitarem argúcia, lambam: Desejo. Onde entoarem
(em Te Deum) Poder, cuspam: Recalque! Façam como as crianças:
apontem o dedo para a ferida do paralítico e lambam, para
ter a certeza de que é. As crianças ainda
não conhecem a palavra, só desfrutam da coisa;
para compartilhar ou julgar ser, não lhes basta –
ou não lhes chega – a designação (signo);
ainda estão no mundo. Portanto, tem de se lambuzar,
meter o dedo – na tomada, no púbis do vovô
bolinador, no Angst e no Träumerei, no Les Demoiselles d’Avignon
e no poodle sorrateiro sob a cama. Lambuzem-se, então.
Se a tara logofílica, ou imagética neste filme – a compulsão em forjar uma falsa imagem através do discurso e da compilação/manipulação de signos – é a doença evidente de Hoover, há uma doença transcendental (uma doença da doença) que só nos é revelada em momentos chave, agonísticos e terríficos: o Recalque. O Recalque não se diz, mas se mostra, como tudo o que pertence ao abismo (Wittgenstein diria: ao silêncio). O cinema é uma arte abissal porque mostrou o que até então nem a literatura ousara dizer, nem a música sugerir, porque não tinham meios para tantas analogias, nem vocação tão obscena para presentes tão mortíferos: o quarto onde fomos concebidos, o ato da concepção, o buraco onde fomos concebidos, o buraco onde seremos Outros, o intervalo entre uma larva e o inseto que a vai devorar – irmanados um pouquinho antes –, o útero do lagarto, o Amor e a Morte conjugados e esperando um filho para o próximo verão (Morte em Veneza, Gertrud, The Brood, etc), os mortos e o que deles não se espera- pelo menos não na nossa frente: o desvanecimento e a féerie da des-figuração (The Act of Seeing).
Clint Eastwood “em verdade, em verdade” nos conta uma história de recalque; e tema mais inspirado para um filme de horror não há. Há vários que trabalham, mais ou menos abertamente, este demônio: Nascimento de uma Nação; Elefante; Nosferatu; O Estranho que nós Amamos; Abismos de Paixão; La Frusta e il Corpo; Nosso Nazista; Água Fria. De alguma forma, J. Edgar pode ser incluído nesta categoria, pois é um filme sobre o discurso também. Se, na palavra de Heidegger, a palavra mata a coisa - pois o signo é uma ausência que se substitui (usurpa?) à presença do ente, logo um fantasma –, o que diríamos então da palavra que alimentou (e mesmo gerou!) a ku klux kan, o macarthismo, Watergate e possivelmente o Governo Reagan, se tivesse chegado até lá?
O Recalque é o medo da finitude; do tempo que passa, do corpo que cicatriza, do amor que apodrece. Da Morte inscrita (écriture!) no corpo. Da Morte como um corpo, enfim visível e à mão. Esta é a grande doença de Hoover. Quem não a possui, ou é possuído por ela? Mas a diferença entre O Doente e os doentes é simples: de grau. De uso também. O seu uso por Hoover foi psicopata; o psicopata é aquele que só consegue entreter uma relação predatória com a alteridade: não literalmente canibal (embora haja casos), mas metaforicamente. Mão única ontológica: ele recebe, e nada troca. A nós consome, jusqu’au bout (de la nuit?). O recalque é o medo (horror!) da finitude, como dito acima; medo da Natureza (na interdição dos pêlos, como na cena da revista, ou do Desejo), da força ou da fraqueza, do contato com o corpo Outro e com o Mundo Outro (entendido como Deles: Yes, They live!). A cena do zoom diante da tortura do anarquista é paradigmática, e forma uma espécie de “trilogia” no filme com duas outras seqüências que desmascaram a grande doença (América) deste pequeno doente: o desmascaramento diante do espelho depois da morte da mãe e o close no homem morto. Dois desnudamentos, dois des-recalcamentos – à maneira do cinema, pau a pau, na marra, plano a plano, campo versus Eu.
O zoom no rosto de Hoover desmascara o seu medo do corpo a corpo; não se trata de uma vulgar covardia ou de uma subliminar homossexualidade; coisa para criança. O que se deve sublinhar aqui é o terror ao confronto com o corpo do Outro, ao contato – por metonímia, contato com o mundo, a Natureza, os negros, etc. Esta arena com o corpo alter se completa mais adiante (seria então uma quatrilogia?), no primeiro beijo – servido a nós, pelo menos – entre os dois namorados, Robert e Edgar. Este beijo só pode acontecer se for provocado por um confronto físico, que substitui a fobia de Edgar ao corpo, ao corpo dos inspetores com o anarquista. O que temos aí é mais um fantasma, uma presença que se substitui à outra, uma cena a outra. Lutar e transar para o recalcado são uma mesma e única chaga: tocar o Outro. E no caso particular deste colecionador (perversão mais do que catalogada), a questão ainda tem um adendo: o confronto com outra superfície é abrir mão da proteção que o signo me oferece – Hoover, que até então só vivera no mundo encapsulado dos signos, da distância para com o mundo. O que Robert deve fazer – e o faz – é quebrar a superfície espelhada do mundo de Alice, e penetrá-la.
No contracampo desta violação, temos o travesti. O travesti diante do espelho também é uma máscara – ele se vê como uma imagem da mãe; portanto, é um desnudamento parcial. Mas que extraordinária serpentina erótica e declamatória vira a câmera, ao percorrer o corpo de Edgar! Que sirigaita fassbinderiana de câmara temos aqui!, rimando com o final do filme (a descoberta do mausoléu “amaneirado” pelo olhar de Robert, pouco antes de Eastwood revelar a relíquia: o corpo nu de Edgar). Esta seqüência extraordinária revela um sub-reptício maneirismo, que até então parecera atropelado no découpage aeróbico, perdido entre os vãos da pose oficial e da Barbie oficiosa. Este maneirismo, como em Fassbinder, é um acinte e um açoite a qualquer idéia “clássica” (Eastwood crássico??) de verossimilhança e transparência; ele apenas busca gerar uma imagem (ao espelho aqui). Perpetuar por um instante, no espelho e para o espelho da câmera – neste sentido, é uma performance – a imagem que jamais pertencerá novamente a mim, que jamais vai coincidir comigo mesmo vida afora. Desgarro da persona e vitória da representação: Requiem do ego. Lembram? “A palavra mata a coisa”, Martin Heidegger, etc. Ou coisa muito melhor: Wordsworth. “Though nothing can bring back the hour of splendor in the grass / of glory in the flower / We will grieve not, rather find / Strength in what remains behind”.
Por fim (but not least), a pá de cal. Eastwood nos mostra um close do corpo nu e morto de Hoover. Muito se discutiu num filme vagabundo recente sobre Hitler o porque do diretor não mostrá-lo morto. Absolutamente exposto à finitude, in Desnatura carbonizado. O mito enfim encarnado. Mortal. O cinema é uma arte mortal. O cinema não é uma arte para recalcados. No cinema, a flor apodrece, o corpo dos deuses também, a aurora entenebrece, eu serei um Outro. E à nossa mão (da retina, ao menos). Ídolos interditos. Mesmo sendo uma arte de imagens. Mas não são imagens consagradas – sacras. Imagens quaisquer. Imagens fantasmas, como as de Hoover. Mas, ao contrário das de Hoover, também podem ser mundanas e presentes. Eastwood reúne ambas as categorias de imagens, ambos os destinos – de homens e de deuses, ou de homens que julgaram-se deuses (até o próximo contracampo, porém). Em Deus, todos serão iguais, murmura Thackeray/Kubrick ao final de Barry Lyndon. (Ou iguais, apenas?) Mas façamos justiça ao recalque e sua dor, seu anseio por um corpo ao sol. Não em Deus. Mas sob a terra. Eastwood nos mostra o corpo sobre (e já já sob) a terra. Cabe a nós imaginar os campos calcinados de luz e os pósteros apodrecidos de Oblivion, os mortos que nenhum morto jamais reverá, pois mortos não voltam, nem vão. Requisceat in pace, Edgar Hoover. Para a nossa paz.
Março de 2012
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