Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2007)
por Felipe Bragança

(Re)Viver a Vida

Ver o truque e se apaixonar por ele. O artifício e saber dele não o que simula, mas o que tem de verdade. Jogo e cena, encenar. Eduardo Coutinho já disse em algumas entrevistas que optou pelo documentário para fugir de “ter” que decupar, ter de “escolher onde botar a câmera”. Opta então por esse pacto de cena milimétrico, que aqui, nesse filme lacrimoso, coração grande, reencontra de frente o melodrama, o discurso do sentimento e do relacionamento à flor da pele, a construção dos afetos pela forma de comportar-se no mínimo do comportamento, no mínimo da fala que projeta o mundo. Duas cadeiras num palco – o cenário se anula. O cenário é o rosto, é o corpo, é o tempo da voz – de novo: esse é o mundo.

Atrizes, verdades, atrizes verdadeiras, o erro do acerto, a narrativa emocionada, a projeção de imagens pela palavra, o ruído que a narrativa nos dá – um liquidificador de pulsões do corpo, do desejo, das normas familiares, dos medos, dos ruídos, dos preconceitos, das verdades que assim o são pelo que afetam. Jogo de Cena é o cinema e Coutinho levado ao limite de seu maravilhamento, onde a afecção da imagem mais de desdobra em afetividade concreta, anedótica, cotidiana – da possibilidade do afeto como imersão de mundo, de generosidade, de construção de personagens através do tom dos olhos, do ritmo de respiração, da fala-como-se-fala.  

As atrizes convidadas para repetir, reiterar, diferenciar as narrativas primeiras das não-atrizes, vão nos dando a possibilidade de uma emoção que é, em ultima instancia, a emoção seminal da dramaturgia no cinema: rever a emoção da vida!

Em Jogo de Cena, Coutinho resume esse processo em firmes 100 minutos de projeção. O efeito com o qual nos deparamos quando a narrativa se repete (seja por paralelismo, seja em dois momentos separados da projeção) é o de se rever/rencontrar a verdade, e nessa repetição, nessa ansiedade de se saber o que se ouvirá, uma abertura maior para o segredo que está nas entrelinhas do diálogo. Quando já se conhece o que será dito, o olhar procura o que não está. Essa repetição e a diferenciação dão às falas, aqui, o lugar majestoso da fabulação (como em todos os grandes filmes “ficcionais” ou “documentais’), mas em uma intensidade nunca antes vista – uma intensidade que é a celebração mais pura, maternal, uterina, da vida. Filhos, saudades, sonhos, fantasmas, amores. A fantasmagoria daqueles rostos é a alma que as atrizes tentam sugar das mulheres “reais’, esses fantasmas imensos que são os rostos na tela grande e imensa desse cinema que imita a vida, que imita não por substituição, mas por desejo, por reverencia.

Calem-se todos os que contam que o cinema de Coutinho é pra se ouvir. Calem-se os que lidam com o close como submissão televisiva e olhem esses rostos grandes – nesse filme feito para ser visto na maior tela possível... Coutinho aqui está mais para Dreyer do que para retratista – sejamos honestos.

E a verdade em Coutinho não é nunca aquela que imita, mas aquela que propõe um maravilhamento, uma descoberta, uma generosidade desinteressada de se deixar levar pelo drama, o drama como aquilo que as atrizes, as inspirações, o diretor, a câmera e a equipe compartilham como desejo de afeto, de afetar. Milagre espinosista da imanência pura e alegre. Ainda que se chore e se sofra. Coutinho não dirige atores, diz que não escreve. Coutinho escreve então, por essa construção crua, seca, de escolher no caldo de tantas vozes pesquisadas uma trajetória (em parceria com Jordana Berg, sua montadora) um certo pulso de contemplação emocionada do artifício.

Vemos esse cinema então assim – como quem vê uma pirueta ou ouve uma música de que gosta muito, ou velhas fotografias sempre revisitadas. Repete-se, mas cada vez que se ouve/vê, a emoção é outra e nova, nunca perdida. Como um replay de um gesto bonito, de um gol, de um looping de uma animação em flash, ou um instante que gruda na memória pra sempre.

O Ano Passado em Marienbad chapiscado de Procurando Nemo. Fruição e arquétipo. Cinema da memória sem verniz onírico ou virtuosismo sem corpo.

Talvez o filme mais consistente/impregnante de Coutinho desde a grandiosidade metafísica e convidativa de Santo Forte, Jogo de Cena é então sobre a memória que faz a fala, o passado que é igual ao presente, e uma homenagem ao próprio cinema como essa máquina de construção da revisão, de revivência, do teatro. Coutinho já disse certa vez: “pra se mudar a realidade, para criticá-la, a primeira coisa que se deve fazer é aceitá-la como ela é... pelo simples fato de existir”. Pra viver ali, juntos delas, essas mulheres nos convidam a uma força que vem dessa política amorosa que é a política da verdade de se lançar ao mundo como experiência sempre de acumulação, nunca de falta ou exclusão.

Um filme que se secreta, úmido, emocional – revendo a política da representação que nos remete gênese do melodrama amoroso no cinema clássico norte-americano.

Coutinho aqui vira do avesso e dribla a tradição televisionada brasileira do melodrama apaziguado como norma do natural: Jogo de Cena se joga contra este imaginário com tanta coragem que consegue romper a barreira de qualquer clichê enfraquecido e retornar o melodrama a seu lugar não de naturalização da vida, mas de análise-espelho e expansão codificada dos desejos e dos controles, das dúvidas e erros mais cotidianos. Re-viver a vida, esse sonho de fantasmas que somos, revirar a vida é o que o teatro procura, é o que as mulheres-atrizes procuram em seus sonhos de redenção, é o que o drama procura em sua religação com o gesto sem tempo. Não a água que sai do olho do cristal japonês que Marília nos mostra, mas o choro como o composto todo do corpo que se esconde, que se disfarça – “quando a pessoa chora de verdade, ela não quer mostrar” – como ela mesma nos diz.

A antítese serena da exploração do afeto é em Coutinho essa cartilha quase monástica, religiosa, murmurada, em que se vive. Religião que, desde a obra-prima Santo Forte, religa a palavra a um lugar anterior ao desejo-confortável-do-real-exposto (e aí penso em Oliveira e sua calma em achar a imagem da imagem, a capacidade explosiva desse cinema de minimalismos vibrantes).

Por isso, hoje, assim, diante dessa genialidade sem esforço, encontramos em Eduardo Coutinho um acontecimento raro e um enigma. Como um daqueles magos mal-humorados e metódicos, que fazem mágicas sempre com o mesmo baralho e o mesmo fraque surrado que carrega: onde alguma coisa sutil, quase imperceptível, nos dribla a repetição e a percepção, as cartas iguais, os mesmos naipes, a consciência do truque, do DISPOSITIVO...  Fazendo daquelas “cabecinhas-falantes”, daquelas ditas “entrevistas”, daquele cenário sem cenário, um lugar sempre novo (constante e forte) de beleza.

Outubro de 2007

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