in loco - II jornada de cinema silencioso
Da nada primitiva arte do quadro silencioso
por Lila Foster

Para quem acompanhou a II Jornada Brasileiro de Cinema Silencioso fica a certeza de que, se existe alguma diferença no cinema produzido nas primeiras décadas da história do cinema, com certeza ela em nada se deve a uma simplicidade, primitivismo ou inocência do olhar. Definitivamente, estamos diante de filmes que têm os seus caminhos de expressão assentados em bases bem diferentes do que está acostumado o olhar contemporâneo: o tempo é diferente, os personagens falam, mas não escutamos. Narrativamente, é possível que se perca o fio da meada em um ou outro momento, como se faltasse ao filme (ou talvez ao espectador) um passo para se seguir o caminho. Se o cinema era diferente, como podemos articular essas diferenças? Ou melhor, como identificar uma força expressiva diferenciada em filmes específicos produzidos na era do cinema silencioso?

É certo que falta à maioria desses filmes o movimento, aqui considerado na sua dupla acepção. A decupagem não recorta a cena em diferentes planos e enquadramentos, fazendo com que os filmes não sejam montados pelo princípio da curta duração dos fragmentos. Os diálogos não são retratados em campo e contracampo; a câmera se encontra na maioria das vezes estática, fazendo com que saltem aos olhos os travellings laterais de A Cidade do Amor (Tomotaka Tasaka, 1928) e o movimento constante em Solidão (Pál Fejös, 1928), cuja dinâmica, o tema e os cenários podem nos levar a considerá-lo um filme hollywoodiano influenciado por filmes modernos sobre o frenesi das metrópoles nos anos 20. 

Porém, se aos filmes parece faltar movimento, essa “limitação” denota a importância de um fundamento básico do cinema: a formação do quadro. A própria concepção do que seja colocar objetos e pessoas em cena através do recorte do espaço fica mais evidente, como se realmente existisse algo de “primário”, no sentido de fundamental, no cinema dessa época. Nunca mais simples, nem primitivo ou amador, mas uma base, uma matéria-prima, o primeiro passo da expressão imagética, com maior valorização dos cenários (criados ou naturais) no quadro, da importância narrativa e estética da profundidade de campo, da disposição dos atores em diversos planos dentro de um mesmo enquadramento. Dentro dessa perspectiva, podemos tentar analisar com mais atenção quatro filmes que compuseram a programação da Jornada: Lucky Star (Frank Borzage, 1929 - foto acima), A Trindade Maldita (Tod Browning, 1925), Shiraz (Franz Osten, 1928) e Os Proscritos (Victor Sjöström, 1918).

Os dois primeiros foram feitos dentro do contexto de produção hollywoodiana (o primeiro pela Fox Film Corporation e o segundo pela Metro-Goldwyn-Mayer), o que nos ajuda a entender a necessidade de comunicação com o público. É impressionante perceber como esses filmes são capazes de enredar o espectador nas suas tramas e funcionam como verdadeiros representantes de gêneros – o drama romântico e o cinema de suspense/terror – que perduram com sucesso até hoje.

O contexto dos grandes estúdios também ajuda a entender a grandiosidade e a habilidade na construção do cenário de Lucky Star. É recriada em estúdio uma estrada na qual se localiza a casa dos dois personagens principais, a menina Mary e o jovem Timothy. Sem aparecer no mesmo plano, cada uma das casas é cercada por uma paisagem em perspectiva, simulando a relação espacial que existiria entre um morro atrás de uma casa ou a estrada que some no horizonte; até mesmo um riacho com água corrente é construído na frente da casa de Timothy. Além de provar a habilidade do estúdio, a grandiosidade do cenário permite que diversas ações ocorram num mesmo quadro e cena, mas em planos espaciais diferentes. 

A narrativa e a criação de pontos chave de tensão se vale desse espaço, como no momento logo antes de Timothy ser ferido e voltar da guerra paralítico: vemos a parte traseira de um carro com os dois soldados, o veículo sobe um pequeno morro e desce, sem que consigamos ter mais acesso visual a ele. Passam alguns segundos e, no fundo da estrada (ou do cenário), explode uma bomba. São praticamente três níveis – a estrada, o vale, o lugar do bombardeio – num mesmo quadro, sem cortes.

O plano mais intenso, pela condensação de sentimentos e significados que comporta, mostra, depois de uma aula de higiene e uma lavagem completa no cabelo, Timothy percebendo a beleza de Mary, antes escondida atrás de um cabelo desgrenhado e sujo. Diante da revelação de uma jovem bonita, ainda enfeitiçado, ele lhe dá um sabonete para que ela tenha melhores hábitos de higiene. O plano enquadra o riacho, a frente da casa, o casal que conversa. Ao fundo, uma pequena queda d’água. Mary se despede com o sabonete na mão, mas contorna a casa, vai até a queda d’água e abre o vestido para se limpar. Em um mesmo plano, ele olha para o ar com cara de apaixonado e ela aprende com o homem que será a sua futura paixão. Nesse momento, se inicia o processo de transformação dos dois.

A importância da disposição dos atores em um mesmo quadro também está presente em uma cena chave de A Trindade Maldita. Um grupo de bandidos, entre eles um anão que se disfarça de bebê, recebe a visita de um policial. Sem saber que um bandido está disfarçado de velha e um anão de bebê, o policial se senta perto de uma lareira e pede informações sobre um roubo acontecido na noite anterior. É um plano frontal, com o anão-bebê em primeiro plano do lado esquerdo olhando para o policial, o policial no meio do lado direito e os outros dois bandidos atrás ao fundo. Enquanto o policial olha para os mais velhos e faz perguntas, o bebê esconde uma jóia furtada dentro de um elefante de brinquedo. Os dois comparsas olham para a sua movimentação com um certo espanto. Isso acaba chamando a atenção do policial que começa a brincar com o elefante de brinquedo. Ele percebe que tem algo ali dentro, todos os olhares se cruzam apreensivamente para, ao final, ele descobrir uma pedra dentro do brinquedo, e não uma jóia. Mesmo que essa cena tenha mais planos do que o exemplo anterior, o enquadramento se aproxima mantendo a referência espacial dos atores. Não é um close que chama atenção do espectador ou aumenta a tensão da cena, é o fato do espectador ter um acesso visual tão completo que aumenta a comicidade e o suspense, acesso completo possível pela colocação de mais de um corpo em um mesmo quadro.

Fora dos cenários artificiais, surpreendem Os Proscritos e Shiraz. Numa chave distinta do cinema americano, a primazia narrativa não está tão presente. Os dois filmes se utilizam das externas como foco e fonte de expressão. Sjöström talvez tenha criado o maior personagem “natural” da história do cinema, com o vento implacável do oeste americano em O Vento. Em Os Proscritos, a cadeia de montanhas na qual se refugia um casal em fuga também assume uma dimensão similar. Mesmo que estejam fugindo, o tempo que o casal passa nas montanhas, vivendo em grutas, caçando e criando o filho é um tempo de liberdade.

A natureza aparece, através dos planos extremamente amplos e com enorme profundidade de campo, como a única ordem na qual a família consegue viver em harmonia. Quando um amigo, também fugitivo, encontra o grupo, essa harmonia se desfaz. Os acontecimentos trágicos têm como cenários os penhascos, a montanha e os corpos de água, tudo captado em planos nos quais a natureza sobressai e o homem é algo bem pequeno perto da sua magnitude. Isso será importante porque é nela, durante um inverno inclemente, que os dois amantes se entregarão à morte. A natureza é gigantesca e a sua força incontornável: cada plano busca reafirmar isso.

Shiraz narra a história de amor que inspiraria a construção do Taj Mahal. Co-produzido pela empresa britânica British Instructional Film e a alemã UFA, é evidente aqui a curiosidade e a vontade de mostrar a cultura indiana. As interpretações dos atores principais, bem distintas do gestual hiperbólico e ultra expressivo, é praticamente minimalista, quase uma não-interpretação. Essa placidez de alguma forma compõe com a arquitetura dos palácios. O filme nos dá a conhecer uma série de lugares da Índia: a vila do interior, a caravana real que caminha entre as montanhas, a feira e os palácios. A fotografia, a câmera fixa, o plano aberto e com profundidade de campo reforçam a beleza da cultura indiana que o olhar estrangeiro busca captar. Bela como a arquitetura, as vestimentas, as jóias e os indianos.

Esses quatro filmes definitivamente não esgotam as possibilidades narrativas, estéticas e semânticas dos filmes do período. Talvez eles sejam exemplos de como os seus recursos criativos podem impressionar um espectador já no final dos anos 2000. Com esses filmes, localizados num período de intenso avanço técnico e de intensa experimentação, talvez possamos mergulhar numa percepção um pouco mais cuidadosa dos filmes e do cinema. Talvez esses filmes possam ser considerados mais simples por lidar com os recursos básicos da construção cinematográfica (o recorte do espaço e a duração) num momento que o olhar era mais concentrado, menos disperso, seja na manutenção da integridade espacial ou no esforço narrativo.

Agosto de 2008

editoria@revistacinetica.com.br

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