in loco - cobertura dos festivais
Diário da França (Journal de France), de Raymond Depardon e Claudine Nougaret (França, 2012)
por Filipe Furtado

Retrospectiva de afeto

Em 1984, Raymond Depardon realizou uma espécie de autobiografia filmada, Les Années Déclic, uma narrativa em primeira pessoa a partir do arquivo de fotografias do cineasta que não só é um grande documentarista, mas também fotógrafo dos mais apurados e que ao longo da carreira testemunhou muitos eventos importantes. Diário da França está intimamente ligado a Les Années Déclic, já que um inquieto Depardon novamente se revela movido por um desejo de compartilhar com o espectador seu arquivo de imagens, tanto de fotos como de material rodado para seus filmes. Diário da França se constrói como um híbrido de cenas novas em que o cineasta vai ao interior da França em busca de capturar novas imagens  e uma extensa colagem da sua obra organizado em ordem cronológica.

O que diferencia radicalmente Diário da França de Les Années Déclic é que, pela primeira vez, Raymond Depardon divide a direção de seu filme com outra pessoa, sua esposa Claudine Nougaret, que desde o fim dos anos 80 é responsável pelo som e produção de seus filmes.  É o olhar de Nougaret que organizara o filme e Diário da França será todo ele construído sobre a dialética de ser um testemunho sobre um testemunho. As imagens pertencem a Depardon, mas o olhar do filme é gentilmente concedido à esposa, que lhe responde com um tributo afetuoso sobre o impacto da sua obra. Apesar de Depardon aparecer sozinho nas cenas contemporâneas, em alguns momentos a troca entre Nougaret e Depardon sugere o Onde Jaz o Seu Sorriso, documentário de Pedro Costa sobre o casal Straub-Huillet, já que o filme, sem mostrá-los juntos, faz um belo trabalho em sugerir a afeição do casal, o que explica porque ele cresce depois de entrarmos na parte da obra de Depardon na qual sua esposa colaborou diretamente.

Diário da França utiliza muito bem sua estrutura com as cenas contemporâneas pontuando o material de arquivo. Nelas, o cineasta vai ao interior da França buscar “imagens fora do tempo”, em contraste aos testemunhos históricos que o filme retoma. Os diários da França que Depardon construiu ao longo de 50 anos envolvem, afinal, tanto grandes eventos e instituições como o cotidiano simples da sociedade francesa. Depardon se mostra sempre muito concentrado nas sequências novas, sempre preocupado com o apuro estético do resultado final das suas imagens. Um elemento muito forte ao longo de todo o filme é o caso que Diário da França faz para o cuidado do olhar de Depardon como um todo. Aqui está, o filme diz, alguém que soube traduzir a história em imagens e não só captou-a.

A experiência de Diário da França lembra muito a de certos álbuns retrospectivos que artistas lançam no final de carreiras entre, a coletânea de sucessos e a coleção de raridades.  O filme coloca este olhar em retrospectiva e haverá ao longo dele alguns momentos sublimes (a sequência retirada do material de 10e chambre – Instants  d’Audience é especialmente ótima) e muitos outros que estão lá protocolares, porque Depardon e Nougaret concluíram que o filme precisava passar por eles. É uma irregularidade que esvazia um pouco o filme de sua força. Diário da França nunca tem a urgência do melhor Depardon. A grande exceção fica nas cenas em que Depardon volta a câmera para si mesmo em frente ao seu trabalho – momentos em que o auto-retrato se completa, marcados pela mesma precisão que justifica um olhar retrospectivo sobre sua obra.

Outubro de 2012

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