Juno
(idem), de Jason Reitman (EUA/Canadá,
2007) por Fábio Andrade
Orgulho
e preconceito Juno
(Ellen Page) descobre, logo nos primeiros minutos, que engravidara em uma “noite
no sofá” com Paulie Bleeker (Michael Cera). Após desistir de fazer um aborto,
ela escolhe, por um anúncio nos jornais, o casal de pais ideal a quem ela poderia
oferecer seu filho: Mark (Jason Bateman) e Vanessa (Jennifer Garner) – jovens,
bonitos, bem-sucedidos e inférteis como uma porta sem tranca. Se
a trama de Juno pareceria sugerir um olhar mais detido sobre as mulheres,
no filme são elas as que se mostram mais à vontade no mundo. Embora a maternidade
traga consigo uma inevitável responsabilidade, a paternidade, sim, parece desorientadora.
Enquanto as mães são autônomas e decididas em suas escolhas, os pais transitam
entre o desejo de autonomia e o dever do altruísmo. Por isso as questões, em Juno,
sempre se revelam, curiosamente, paternas. Juno passará pela gravidez em toda
sua evidência, mas excluirá Bleeker do processo com a intenção de poupá-lo, assim
como é ela quem dá as cartas na relação sexual que marca o início do filme (e,
em cena com timing de comédia bastante preciso, os pais de Juno logo descartam
a possibilidade de a idéia original ter sido de Bleeker). Da mesma maneira, é
Mark, e não Vanessa, quem lida de forma ambígua com seu presente, e a conversa
que marca a separação do casal é especialmente esclarecedora na multiplicidade
de pontos-de-vista que Juno busca para si. A
relação de Juno com a madrasta (Allison Janey), à primeira vista complicada, se
resolve como se fosse uma de mãe e filha, à mesa de ultra-som, excluindo qualquer
possível defesa da mãe biológica em detrimento da mãe de criação. Ficamos, porém,
marcados pela tocante inevitabilidade do espaço que sempre se coloca entre o desejo
do pai (J.K. Simmons) de compreender a filha, e a impossibilidade de entrar num
mundo onde ele é apenas coadjuvante. O filme de Jason Reitman assume, portanto,
o ponto-de-vista de sua personagem-título não para aplaudir, sempre, suas escolhas;
mas sim porque a desorientação do universo masculino só ficaria evidente se vista
pelos olhos de uma garota tão confortavelmente instalada em sua própria pele.
Nesse sentido, o jogo de olhares de Juno faz dele
uma versão menos trágica de As Virgens Suicidas – filme de Sofia Coppola
sobre cinco irmãs que só poderia, também, ser narrado por um homem. Existe, entre
as personagens de Juno, uma distância inevitável; mas, ao contrário do
clubinho da kombi de Pequena Miss Sunshine, ela é amenizada pelo desejo
constante de convivência. Por isso, a vida que segue ao final do filme é tão apropriada.
Depois de Juno tentar empurrar Bleeker para fora de sua vida e culpá-lo por isso,
sobrevive o que eles tinham de mais precioso antes de toda a experiência: o desejo
de conviver. É verdade, porém, que entramos no cinema para
ver Juno tomados de uma série de preconceitos: é o filme fofinho da vez;
é o Pequena Miss Sunshine do ano; é mais um representante de um suposto
cinema indie – palavra que, a esse ponto, já se tornou mais uma posição
estética do que uma questão de produção – que
cai nas graças do grande público, encanta a crítica mais conservadora com sua
suposta originalidade e, vejam só, chega até a ganhar uma simbólica indicação
ao Oscar de melhor filme. E, de fato, nos primeiros minutos de projeção, Juno
não faz nenhum esforço para se afastar da visão pré-concebida que todo espectador
carregará consigo para a sala de cinema. Temos, lá a protagonista meio “esquisitinha”,
o garoto com roupas engraçadas, a trilha de indie rock sem guitarras, as
cartelas escritas “à mão” na película, a ambientação estrategicamente escolhida
para gerar o ruído entre personagens “modernos”, tomando decisões “modernas” em
sociedades aparentemente conservadoras. Ainda ganhamos uma montagem meio constrangedora
falando sobre a maneira como uma garota “esquisitinha” se veste, e um desejo estranho
de que os rapazes populares da escola prefiram, secretamente, elas às garotas
populares. As
possibilidades de limitarem Juno a uma válvula de escape para todos que
se sentem parias sociais, porém, aos poucos vão se esvaindo. Juno logo descobrirá
que Mark era um roqueiro frustrado que, hoje, vive de compor jingles e
que – fica logo evidente – não se via plenamente satisfeito na estabilidade de
sua vida familiar. Se a pronta identificação entre Juno e Mark poderia decretar
o fim de qualquer interesse no filme de Jason Reitman, é justamente na negação
desse caminho que ele se mostra plenamente consciente de suas questões, e o que
parecia um desfile de tipos e tipificações se revela uma operação mais complexa
e surpreendente. Assim como Juno é consciente o suficiente das expectativas
do espectador para, a princípio, confirmá-las em seu prólogo, o restante do filme
é, em grande parte, movido por essa mesma consciência, pensando, porém, essas
expectativas como limites a serem transpostos. Se filmes
como Anti-Herói Americano e Pequena Miss Sunshine fecham-se para
o mundo ao seu redor em um doloroso ato de condescendência com suas personagens,
Juno se torna interessante por não acreditar precisar dessa condescendência.
A idéia de personagens disfuncionais logo cai por terra, porque eles se mostram
tão funcionais quanto qualquer outro no filme. As crises são generalizadas e decorrentes
das relações entre as pessoas, e são muito mais efetivas dessa maneira do que
como possíveis batalhas sociais (o independente X mainstream de Anti-Herói
Americano; a ditadura da beleza X a ditadura da feiúra em Pequena Miss
Sunshine). A partir do momento em que o disfuncional se torna, também, uma
forma de totalitarismo, Juno é bem-vindo na medida em que pensa essas questões
de maneira mais matizada, menos simplória. Se, ao fim e ao
cabo, ainda precisamos transpor alguns cacoetes para nos aproximarmos do coração
do filme de Reitman, um olhar mais distanciado o aproxima, curiosamente, de uma
estratégia recorrente nos filmes de M. Night Shyamalan: após nos acomodar, com
um certo conforto, em terreno de gênero familiar, Reitman insere elementos que
implodem essa lógica interna, e que nos obrigam a repensar a maneira que nos relacionamos
com aquele filme. Por baixo de toda sua aparente superficialidade, Juno
vem nos lembrar da necessidade de deixar nossos preconceitos sempre à porta do
cinema. Lembrança que, para críticos e espectadores, é sempre bem-vinda. Março
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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