Katyn
(idem), de Andrzej Wajda (Polônia, 2007) por Paulo
Santos Lima Atestado
de óbito
A última imagem de Katyn é a de
um fade que se torna tela negra e permanece por um tempo, com trilha dramática
na banda sonora. É um luto, e pelo que o filme nos mostrou até aqui, fica claro
que é pelos oficiais poloneses que foram executados absortamente pelos soviéticos,
em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, quando URSS e Alemanha ainda davam
as mãos (uma cena anterior, inclusive, mostrando literalmente os tiros nas nucas
das vítimas, com sangue respingando na lente, faz a ligação direta). As mesmas
imagens, confluídas para o mesmo sepulcro, contudo, deixa antever outro falecido:
o cinema do diretor polonês Andrzej Wajda. Autor que sabia
se comunicar melhor com o cinema de sua época e as inevitáveis heranças, como
no soberbo Kanal (pós-neo-realismo casado com Bresson), ou mesmo Cinzas
e Diamantes (Nouvelle Vague e realismo poético), ou Os Possessos (cinema
“de arte” francês), Wajda chega bastante atordoado a 2008, momento no qual o cinema
reprocessa vários estilos. Ele simplesmente adota alguns recursos “contemporâneos”
(câmera na mão, cortes secos, planos curtos em determinados momentos de correria
e tensão) para levar à tela um discurso “clássico”. E este “clássico” funda o
problema de Katyn, uma vez que o termo hoje diz respeito a um cinema narrativo,
mas não necessariamente ortodoxo na clareza de enunciados e resolução de questões
– Spielberg vem resolvendo suas histórias estraçalhadas nas ambigüidades e Clint
Eastwood, adotando um classicismo mais puro e referente às convenções fundadas
por Griffith, tem como luz em seus filmes a idéia de eterno desconserto de mundo,
que por sua vez posta a fusão entre ando e desando das coisas. Já o longa de Wajda
faz uma verdadeira aula didática de história extremamente positivista, apontando
simplificadamente sujeitos, apoiando ou não suas ações, como nas enciclopédias.
Explanação feita com auxílio de gruas, tom esverdeado na fotografia (estamos numa
“reconstituição” de época), neve, geometrias de soldados – quase um primo europeu
de Olga. O
diretor prefere não identificar (não dar identidade) aos personagens nazistas
e russos, que são vistos como representações de um todo maior e invisível, que
podemos chamar de Alemanha nazista e URSS stalinista. Mas personaliza os poloneses,
da esposa e mãe de um oficial ao jovem rebelde, um colega soldado etc, dividindo-os
entre os resistentes altivos e os covardes que cederam aos invasores. Ou seja,
temos dois Estados bestas-feras (sobretudo o soviético) que maltratam as pessoas
de bem (os poloneses dignos). Há referências ao entreguismo dos cidadãos poloneses
à derradeira invasão soviética em 1945, claro, mas sejamos rigorosos: o filme
trata especificamente de um dado circunscrito, a tal chacina feita pelos soldados
de Stalin a alguns militares de poloneses de alta patente. De
fato, os soviéticos fizeram coisas bocado feias na guerra, mas o que significa
hoje sacrificar o escopo dramático para assim apontar culpados por um fato histórico
completamente isolado? Ou, que aula é essa que sufoca o cinema a ponto de torná-lo
uma experiência em que se retorna a um rebaixamento de um Richard Attenborough,
ou aquele cinema feito nos anos 80, superproduções históricas que poderiam se
enquadrar numa versão atualizada do cinéma qualité que os críticos da Cahiers
lucidamente condenavam nos anos 50? Wajda, que enganava mais elegantemente com
filmes como Danton – O Processo da Revolução (ao menos, um fortíssimo tour
de force de Gerard Depardieu, soberbo) para falar, no caso, da Polônia dos
anos 80, a de um perdido Lech Walesa, agora também perdeu o fio da história. Nada
a se estranhar, nesse momento em que se vive a histeria da relativização de tudo,
e a Polônia virou um país com cicatrizes e rasgos musculares causados por 2a
Guerra, nazistas, soviéticos e ditadores ao longo do século 20, mas tendo de correr
a Olimpíada da globalização. E sobre o qual um cineasta de 82 anos parece não
mais saber para onde apontar seu cinema. Sim: Clint, Manoel
de Oliveira, Godard e Rohmer sabem, mas seus cinemas não são ferramentas, não
são meios para o blablablá político. Para esses diretores, a política está na
imagem, jamais a imagem na política. Katyn é bastante sintomático de um
cineasta e o encaixe dele nesse momento histórico gasoso no qual vivemos. Um filme
que é uma lembrança perdida, quase um flashback final – talvez aquele que,
dizem, nos acomete nos minutos pré-morte. Outubro de 2008
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