As Neves do Kilimanjaro (Les Neiges du Kilimandjaro),
de Robert Guédiguian (França, 2011)

por Andrea Ormond

Do avesso

Alguma coisa acontece no coração do universo quando humanistas e pragmáticos se cruzam. Podem estar no centro de São Paulo, Marselha ou La Paz, o resultado é sempre o mesmo: falam idiomas diferentes, reviram os olhinhos, espiam-se em contenção para não se agredirem mutuamente. Quando afirmo isso, peço ao leitor que esqueça a dicotomia esquerda x direita, que neste caso só interessa para empobrecer discussões. Pensem melhor: o mundo mudou e estamos todos no mesmo barco. Os humanistas são os velhos; nós, do império tecnológico, somos pragmáticos à força. Desempenhamos o ridículo dos baixos salários, da alta carga de trabalho, da competitividade autofágica dentro do próprio emprego. Tudo porque o mundo mudou e o humanismo está morrendo. Melhor dizendo, os humanistas estão pendurando as chuteiras sem serem substituídos por outros.

Em As Neves do Kilimanjaro durma-se com o barulho que a morte deste "olhar ao próximo" provoca. O filme não doura pílulas: toma partido, até o fim, de um ideal mais démodé que vinil do Rick Wakeman. Michel (Jean-Pierre Darroussin) é desses sujeitos tão íntegros que sorteia o próprio nome, em uma loteria de demissão coletiva, no lugar de algum colega mais novo e desavisado. Claro: Michel é cinquentão, cresceu nos anos 70, enxerga a vida através de um prisma ideológico onde o sujeito (a ética do sujeito) importa mais que as engrenagens que o comandam. Sindicalista, tem noção exata de que não participar do sorteio o colocaria em uma encruzilhada moral. Não percebemos (somos o sapo na panela de água quente), porém este tipo de atitude some, desaparece, à medida em que o capitalismo se sofistica. Daí o mal estar que o personagem e sua consorte, Marie-Claire (Ariane Ascaride), causam. Eles têm a consciência de que homens devem trabalhar pelo bem estar de outros homens. Não da Apple, ou do Google, ou do armazém de secos & molhados da esquina.

Demitido, Michel ganha de aniversário de casamento uma viagem para a Tanzânia, aos pés do Monte Kilimanjaro. Um de seus ex-colegas de emprego, Christophe (Grégoire Leprince-Ringuet), também sorteado na víspora do capeta, resolve roubar o dinheiro e as passagens. O assaltante é jovem (pragmático à força), mata um leão por dia e o motim proporciona a ele pagar contas, comprar Nutella para os irmãos, respirar dez segundos antes de novas dificuldades. Acontece que Michel descobre o paradeiro de Christophe e denuncia à polícia. O sofrimento do rapaz acaba por comovê-lo, o velho humanista retira a queixa de roubo e passa, junto da esposa, a fazer o serviço que caberia à assistência social francesa na vida dos garotos órfãos de pai.

A parte bonita é que Michel e Marie-Claire não acreditam muito no Estado e não acreditar no Estado (qualquer Estado) é dos maiores sinais de inteligência humana. Acreditam em si mesmos, enquanto os novos (inclusive a família) só conjugam esta ideia na tônica de autoajuda. Julgando os coroas cafonérrimos, eram bem capazes de chorar por fotos de gatinhos abandonados no Facebook, enquanto os irmãos de Christophe passariam necessidades com o arrimo no xilindró. Eduardo Dusek foi Nostradamus há três décadas ao pedir a troca do cachorro por uma criança pobre. Na mesma linha, o diretor, Robert Guédiguian, quer dizer sobre a condição humana que ela depende dos próprios humanos para melhorar. Com toda a sua bovinice, Michel parece hoje com certeza um outsider perigoso, embora guarde o pecado de não ter defeitos. Infelizmente, As Neves do Kilimanjaro vai tão fundo na paranoia salvacionista que acaba gerando um protagonista irreal em demasia. O capeta da víspora deve tê-lo sorteado porque ficou enjoado de tanta bondade. 

Nesse ponto do raciocínio, chegamos à constatação óbvia: o grande personagem do filme não é Michel, é Christophe. O pragmático, o ladrãozinho barato, o homem sem ilusões defrontando o mundo antigo, no misto de medo e irreverência. É daqueles peixinhos minúsculos, engolidos por cardumes um pouco maiores – inclusive o cúmplice, que só lhe repassa 1500 de 5000 euros. Olhando Christophe com os irmãos, tá lá: o rapaz é gente boa. Gostaria de frequentar um fast food vagabundo com uma paquera e o desespero que o empurra à desonestidade vira notícia tão nobre quanto o humanismo dos velhos – até porque ele reconhece, explicitamente, que com mais direitos e menos pressões era fácil ser honesto, e que os seres humanos da atualidade não valem mais tanto quanto valiam na juventude de Michel. A alteridade de Christophe é subalterna à vontade industrial, tecnológica, globalista, xing ling. No lugar dos angry young men nasce o sujeito premido por um sistema que nem sequer o marginaliza, porque não chega a enxergá-lo.

Superar as lágrimas de Michel e concentrar-se no drama de Christophe salva a experiência de As Neves do Kilimanjaro. O diretor e roteirista se trai nas figuras de Michel e Marie-Claire justamente porque simpatiza com elas, quer sugerir um sentido maior em suas atitudes, quando tudo é quase apenas o espírito dos tempos. Dizer que se inspirou no poema de Victor Hugo, “Les Pauvres Gens”, igualmente é bonito, mas força a mão na beatitude. Sem ser o queridinho da Previdência Social, o moço assaltante fala por nós, dialoga conosco, odiando. Querendo um conto a respeito da caridade, dos valores humanistas, Robert Guédiguian analisou, de leve, a caminhada da sociedade ocidental rumo ao cinismo. Insolúvel, idiotizado, manipulado, o pragmático garante apenas a si mesmo, sem nenhuma intenção de melhora.

Abril de 2012

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