in loco - cobertura dos festivais
Lacuna, de André Lavaquial (Brasil, 2012)
por Raul Arthuso
Estar só e não estar
Lacuna tem uma das sequências de
abertura mais fortes do cinema brasileiro recente: após
duas cartelas sobre a lenta aproximação da Antártida
ao continente e, em seguida, um texto poético com a intenção
de cartografar esse encontro em devir, há um longo plano
na praia com um homem que anda beirando o mar de ondas fortes
e o cinzento céu. Uma narração tenta dar
conta de uma forte sensação de isolamento e urgência,
porém o vento forte faz a câmera tremer e racha a
banda sonora, quebrando o texto, fazendo do conteúdo apenas
os últimos vestígios dessa sensação
- e seu sentido plano ficará apenas com o homem que anda
solitário. Essa construção – que se
poderia tomar como efeito ou ainda como um problema técnico
– cria perfeitamente o clima de exasperação
e urgência, o mal dos tempos que atinge os três protagonistas
do filme.
Após
o prólogo e as primeiras sequências de apresentação
das personagens, as duas cartelas iniciais se mostram essenciais.
Pois Lacuna irá tratar de três continentes
em constante movimento não-linear e uma urgência
em suas realizações. Em seu ofício, cada
um dos personagens lida com esse movimento desordenado que levará
em algum momento à aproximação, como que
sentindo o mundo em um trágico destino de destruição.
Assim, as ruínas de casas destruídas pelo aumento
do nível da água do mar que Iuri (Iuri Frigoletto)
fotografa e filma com sua câmera portátil tornam-se
imagem central para o filme, na medida em que o personagem lida
com os vestígios de um desastre no passado, mas que espelha
seu presente e (possível) futuro. Lacuna, assim
como as imagens de Iuri, se faz de vestígios do isolamento
das personagens e sua busca por lidar com esse mundo rumo ao apocalipse.
Daí também decorra a maior fragilidade do filme,
na medida em que ele dá a si mesmo um objetivo claro de
cartografar a distância entre as três personagens
já com o ponto-de-fuga do encontro entre elas em vista.
Pois, se a chegada já é de alguma forma dedutível
pelas cartelas iniciais, o peso recai nessa medida de distância
que vai diminuindo aos poucos. Nesse processo de montagem paralela
das três personagens, há certa irregularidade das
situações, algumas repetições de cenas
– mais sensíveis nos momentos de Letícia,
cuja presença se dá em maior parte no trabalho -
e lançar mão de alguns chavões de mise-en-scène,
como o andar solitário pela cidade na noite ou o banho
melancólico.
Ainda
assim, há uma perceptível força interna aos
melhores momentos do filme. As cenas são conduzidas sempre
como um freestyle entre o aparato e os atores, mesmo
quando fica evidente um texto escrito ou uma marcação.
A câmera parece sempre buscar os vestígios do que
as personagens têm a dar, e isso fica mais sensível
no som, cuja ênfase é sempre pontual em algum ruído,
algum instrumento, alguma ação, um pouco fora do
registro usual da banda sonora em que se ouve tudo para, no fundo,
perceber quase nada. Esse jogo freestyle vai de encontro
com o papel que o improviso desempenha na própria história,
já que os três protagonistas mantém atividades
relacionadas a ele: Letícia dá aula de postura corporal
e faz performances artísticas; Felipe é músico
de uma banda de freejazz; e Iuri filma um documentário
sobre a destruição de comunidades litorânea
pelo aumento do nível das águas. Em alguma medida,
o imponderável faz parte da vida dessas personagens: elas
estão abertas ao risco, ao infinito processo de acabar
e recomeçar, estar aberto ao encontro e ao desencontro,
ao cheio e ao vazio – movimentos que habitam o andar paralelo
de cada um deles rumo ao "encontro dos continentes"
prometido no início do filme.
O filme então se mostra em franco diálogo com a
produção de longa-metragem recente que abordou o
papel da amizade e do grupo como forma de resistência ao
mundo. Pois Lacuna nega, em certo sentido, a criação
do mundo anódino adocicado de A Alegria e a simbiose
de Estrada para Ythaca. Porém, é com Os
Monstros que o filme parece dialogar mais abertamente. Na
simbólica sequência final, Felipe faz uma jam
com sua banda em frente às ruínas de uma das casas
do documentário de Iuri enquanto - presume-se - ele os
filma. A referência clara, no entanto, parece uma resposta:
enquanto a jam de Os Monstros era uma recusa
a um mundo que só oferece a recusa a esse grupo, essa
jam aponta para a impossibilidade de reclusão. Não
é possível fugir do mundo, ainda que ele esteja
ruindo. Os recém-amigos de Lacuna encontram em
si a força para mais um recomeço em suas vidas,
e estão abertos para o imponderável de um mundo
ruindo diante de seus olhos, com o qual terão de (outra
vez) recomeçar.
Outubro de 2012
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