A Dama na Água (The Lady in
the Water),
de M. Night Shyamalan (EUA, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
Um grande projeto de cinema
Defender A Dama na Água não é tarefa fácil,
porque suas limitações saltam aos olhos. No entanto, a defesa
do novo filme de M. Night Shyamalan é algo mais que justo, pois
apesar dos acidentes, as virtudes também são muito evidentes.
A começar por uma questão óbvia e que contribui para fazer a diferença:
Shyamalan, sem dúvida ,é um dos poucos cineastas norte-americanos
surgidos nos últimos dez anos que tem um claro projeto de cinema.
E, de O Sexto Sentido à Dama na
Água, sem fugir de suas obsessões conceituais, o diretor
propõe problemas novos a cada filme. É mais sadio ver um diretor
se arriscar, como Shyamalan o faz a cada filme, do que se proteger
no seguro reduto da compilação de velhas idéias e formas. Portanto, A
Dama na Água não tem só a coragem, mas também
algumas das operações mais fortes no cinema deste ano. Shyamalan
faz o seu “filme-problema”, transparente porque não consegue
escamotear os erros – como também não consegue conter sua beleza
ofuscante.
A narf Story (Bryce Dallas Howard), uma
espécie de ninfa do mar, aparece na piscina de um condomínio comum
e é encontrada pelo zelador Cleveland Heeps (Paul Giamatti). Ela
veio do “Mundo Azul” e está sendo perseguida por um monstro. As
pessoas da vizinhança precisam decifrar alguns códigos e entender
o papel de cada um deles a fim de salvar Story. Enquanto a história
se faz, há uma investigação e uma reflexão sobre o papel que cada
um desempenha. O primeiro problema é que nunca em um filme do
diretor as implicações dramáticas do seu ponto de partida fabular
se revelaram tão mecanizadas: muitas coisas estão ali para armar
um jogo com o espectador, sem uma relação orgânica com o filme.
A Dama na Água opta em alguns momentos por certa
vulgaridade de intenções ao mesmo tempo em que busca algum distanciamento
disso, a fim de entender melhor esses mecanismos. Nesse sentido,
existe um descompasso entre o conceito (um filme que se faz enquanto
pensa sobre seu próprio processo ficcional) e sua realização.
Como
de costume, Shyamalan parte do cotidiano, da vida comum, sem grandes
eventos. Só que uma coisa parece mais clara em A Dama na Água
do que em qualquer outro de seus filmes: os personagens mais
centrais têm certo sentimento sobre o mundo, sentimento esse escamoteado
pelas obrigações da rotina (o escritor Vick interpretado pelo
próprio diretor), por uma dor incurável (Cleveland) ou pela solidão
que acompanha os grandes eventos do mundo pela televisão com um
olhar absolutamente impotente (Leeds). A possibilidade de fazer
da vida (e do mundo) algo maior, se não parece longe, parece ao
mesmo tempo completamente fora de alcance. Temos um condomínio
basicamente construído para abrigar aqueles tipos de pessoas (imigrantes,
solitários) para quem o sonho americano é somente uma estéril
ficção. O diretor consegue captar esses momentos, como se cada
imagem perscrutasse uma dor e uma solidão irremediáveis. Aqui
não interessa somente a solidão de um homem, mas a de toda
a comunidade. A descrição dessa comunidade, a apresentação do
prédio como espaço físico e subjetivo é uma das coisas mais belas
já vistas em seu cinema.
No cinema de Shyamalan, o tempo é o da melancolia.
Suas imagens nascem do desencanto, são filhas de uma época de
um pragmatismo árido, onde o poder de crença na imagem foi substituído
pela perversão do auto-engano voluntário de certa concepção da
imagem do real. A Dama na Água é uma fábula melancólica,
assim como outras grandes fábulas de nossa época, como Castelo
Animado, de Hayao Miyazaki, e Peixe Grande , de Tim
Burton. A memória dos tempos atuais é o do fracasso da imagem.
M. Night Shyamalan é a consciência crítica dessa época. Não, isso
não quer dizer que ele seja o melhor ou o mais completo cineasta
do nosso tempo, mas ele resignifica a potência criadora das imagens.
Suas imagens nascem do fracasso da realidade:
o fracasso do psicólogo em salvar o paciente no início de O
Sexto Sentido; o fracasso de um homem em morrer (!) em uma
tragédia em Corpo Fechado; o fracasso em salvar a esposa
de um acidente em Sinais; o fracasso de uma sociedade perfeita
em A Vila; o fracasso da vida perfeita de um ex-médico
que teve a família assassinada como Cleveland em A Dama na
Água. Só que o fracasso libera outras forças, criativas e
criadoras. Desse modo, a fantasia é a chave em que o cineasta
pode orientar com demasiada liberdade todas essas questões. Ao
contrário do que se pode pensar, a fantasia no cinema de Shyamalan
não é uma resposta, ele é melancólica porque não pode restituir
o que foi perdido. Nessa nova idade da imagem, ela não pode ensaiar
um retorno à inocência. A Dama na Água se erige em cima
dessas mesmas questões – mesmo que sem a aparente complexidade
de A Vila e Sinais, ou a organicidade de Corpo
Fechado e O Sexto Sentido.
De todos os filmes do diretor este é o mais francamente
religioso. Não, não uma religiosidade existencial e confessional
como a de Martin Scorsese e Paul Schroder, mas uma religiosidade
que entende a imagem (a evidência) como único elemento possível
de criar significado e de fazer novas todas as coisas. Os personagens
para acreditar precisam não só “ver”, como também participar.
Por isso, a importância desse elemento fantástico, algo que em
princípio ninguém vê (como a criatura que se confunde com o ambiente),
e a necessidade de contextualizá-lo em um ambiente muito prosaico.
Talvez nesse sentido, esse sentimento de mundo (ordinário, fantástico
e religioso) de A Dama na Água seja mais próximo de um
cineasta como Carl Dreyer, que entendia a imagem como implicação
daquilo que vemos e também daquilo que não vemos.
O
projeto de cinema de M. Night Shyamalan é grandioso, e nesse último
filme sua realização soa um tanto confusa, já que tudo ali parece
precisar de uma estrutura menos movediça. Porém, se é fácil deixar-se
enganar pelas qualidades de um filme, é mais fácil e cômodo ainda
se deixar levar pelos seus defeitos. Nesse sentido, pode-se até
depreciar o filme em razão de seus descompassos, mas não há como
ignorar o quão forte é sua visão e sua força, sua pulsão de vida.
Não existe grande cineasta que não revele um particular e original
sentimento de mundo, às vezes com tanta força que os defeitos
parecem pequenos perante as qualidades: é assim com Godard, é
assim com DePalma, era assim com Glauber. Hoje em dia isso é algo
raro. Assim, se até é compreensível, ao fim de A Dama na Água,
que alguns tenham a sensação de não ter visto um grande
filme, não ter visto um grande cineasta em ação é quase impossível.
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