in loco
Cinefilia portenha
por Leonardo Mecchi

Um pequeno teste para o leitor: em que cidade do mundo é possível encontrar salas de cinema dedicadas exclusivamente à produção nacional? Uma cidade onde filmes como Mal dos Trópicos, Tarnation e Hamaca Paraguaya são lançados comercialmente (sendo o último lançado não apenas com mais de uma cópia, como dividindo espaço em dois multiplexes com filmes como Torres Gêmeas)? Onde os três principais museus da cidade exercem sua função sócio-cultural e possuem salas de cinema com uma programação diferenciada? Uma cidade que publica há 15 anos, ininterruptamente, uma revista dedicada exclusivamente ao cinema, que não apenas discute como define os rumos da cinematografia nacional? Onde os escritos dos grandes teóricos do cinema podem ser encontrados facilmente, em boas edições, em qualquer livraria e a preços acessíveis? Uma cidade onde a produção cinematográfica é tão efervescente que você pode esbarrar, em um mesmo dia, em mais de um set de filmagem ao caminhar por suas ruas (ver foto acima)? Se o leitor respondeu Paris, pode não estar errado, mas certamente se surpreenderá ao saber que, a aproximadamente três horas de vôo de São Paulo, poderá encontrar uma outra cidade cuja paixão pelo cinema é capaz de deixar qualquer cinéfilo brasileiro de boca aberta: Buenos Aires.

Após a Mostra de Cinema de São Paulo, resolvi tirar merecidas férias e aportei na capital argentina. O que não esperava era que, ao invés de descansar a mente e os olhos, como planejado, após uma maratona de mais de 40 filmes, fosse mergulhar ainda mais profundamente no cinema. Embora já soubesse dessa paixão de nossos vizinhos, não esperava encontrá-la de maneira tão forte e onipresente.

Já no primeiro dia, ao visitar a El Ateneo (a mais tradicional livraria de Buenos Aires), pude me deparar com a enorme oferta de livros sobre o assunto. É possível encontrar, em novas e belas edições, desde os principais escritos teóricos sobre cinema (Bazin, Eisenstein, Tarkovski, Deleuze, Vertov etc) até traduções freqüentes das mais recentes publicações da coleção da Cahiers du Cinema, passando por produções nacionais como o belo ensaio sobre o novo cinema argentino realizado por Gonzalo Aguilar ou a série de entrevistas feitas por Lorena Cancela com diretores como Apichatpong, Kiarostami, Lisandro Alonso e Claire Denis, entre outros.

A tal farto material teórico, une-se o trabalho crítico da revista mensal El Amante, a mais importante publicação argentina sobre cinema que, agora em Dezembro, completará 15 anos de bons serviços prestados. Fundada por Quintín, um dos mais importantes críticos da Argentina, a revista sempre se preocupou com a produção nacional – não por acaso, foi uma das primeiras publicações a reconhecer em cineastas como Lucrecia Martel, Pablo Trapero, Lisandro Alonso e Adrián Caetano, uma nova geração capaz de mudar os rumos do cinema argentino. Apenas para se ter uma idéia de seu conteúdo, na edição de novembro (que destaca em sua capa Os Infiltrados, de Scorsese) há um polêmico artigo de Gustavo Noriega que detecta na produção nacional mais recente uma certa tendência à solenidade que poderia significar o início do fim do Novo Cinema Argentino, entrevistas com Paz Encina (diretora de Hamaca Paraguaya) e Joe Dante, uma análise da retrospectiva integral de Guy Debord no festival DocBsAs (um importante fórum em Buenos Aires dedicado ao cinema documental), obituários de Eduardo Mignogna e Danièle Huillet, além de críticas para um grande número de lançamentos em DVD, salas de cinema e programas feitos para TV.

Tão farto material teórico disponível de nada adiantaria se os próprios filmes não estivessem facilmente acessíveis. E é aqui que Buenos Aires apresenta uma grande vantagem em relação a cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, a começar pela programação de seus museus. Um dos principais museus da cidade, o Malba (Museu de Arte Latino-Americana, lar entre outros do Abaporu, de Tarsila do Amaral, e do Auto-retrato de Frida Kahlo), possui uma bela sala de exibição, que divide seu espaço entre lançamentos (Mal dos Trópicos e Hamaca Paraguaya estavam estreando na semana em que visitei o museu) e mostras temáticas (estava em cartaz uma mostra denominada La brujería a través de los tiempos, uma desculpa picareta para passar uma variedade de clássicos – muitas vezes em cópias restauradas – de diretores como Orson Welles, John Boorman, Dario Argento, Roger Corman, Jacques Tourneur, Tim Burton e do grupo britânico Monty Python, entre outros). A sala, curiosamente, possui patrocínio da Petrobras e os ingressos custam 7 pesos (o equivalente a R$ 5,00), com meia-entrada para estudantes e aposentados.

Já o Museu Nacional de Belas Artes exibia em sua sala nada menos do que uma retrospectiva completa da obra do diretor e teórico russo Andrei Tarkovski, em homenagem aos 20 anos de sua morte. Assim como todas as demais atividades do Museu (que incluem concertos, ciclos de palestras e sua bela coleção permanente de arte européia do século XII ao XX), a entrada é livre e gratuita. Finalmente, o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires possui como anexo o Museu do Cinema, que além de realizar mostras e retrospectivas, ainda possui uma ampla biblioteca e coleções de pôsteres, fotos, documentos etc.

Mas nem só das salas de museus vive a cinefilia portenha. O Centro Cultural Borges, no centro da cidade, exibia uma retrospectiva da obra de Luchino Visconti com entradas a 5 pesos (R$ 3,50 – metade para estudantes e aposentados); o teatro San Martín, sob responsabilidade da prefeitura de Buenos Aires, exibia pelo mesmo valor uma mostra de Jeanne Moreau (com obras de Louis Malle, Truffaut, Buñuel, Peter Brook, Jacques Demy e Orson Welles); e, além disso, ainda há a enorme variedade de títulos disponíveis nas mais de 430 telas espalhadas pela região metropolitana (muitas delas em cinemas de rua, responsáveis ainda por 40% dos ingressos vendidos) .

Outra iniciativa louvável – e que poderia muito bem servir de exemplo para a política cultural brasileira, após as inevitáveis adaptações e melhorias decorrentes da experiência argentina – são os Espaços INCAA. Criados e mantidos pelo Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (equivalente argentino da nossa ANCINE) há mais de uma década, os Espaços INCAA são um conjunto de mais de 30 complexos espalhados pela Argentina e por cidades no exterior (como Roma, Paris, Nova York e Madrid) cujas salas são dedicadas prioritariamente ao cinema argentino – e que, eventualmente, abrem espaço para outras cinematográficas latino-americanas (como no caso do Festival de Cinema Venezuelano, que ocupava em Buenos Aires duas dessas salas durante o mês de Novembro).

Esse caldo cultural que torna disponível, de forma ampla e acessível, pensamento crítico e produção diversificada (tanto clássica quanto contemporânea) é, sem dúvida, um dos principais responsáveis pelo crescimento na produção Argentina (que pulou de 27 filmes lançados comercialmente em 1997 para as 69 estréias de 2004 – sendo 54% de diretores estreantes) e o reflexo disso continua evidente no cotidiano da cidade: em menos de 10 dias visitando Buenos Aires, deparei-me com quatro sets de filmagem ocupando suas ruas, sendo duas produções profissionais e duas universitárias, mostrando que o cinema argentino ainda vai ter muito a dizer.

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Para quem quiser se aprofundar mais no cinema argentino, segue uma lista de links interessantes, retirados do livro Otros Mundos – Um ensayo sobre el nuevo cine argentino, de Gonzalo Aguilar:

Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales

Base de Dados sobre Filmes Argentinos

Estatísticas sobre cinema na cidade de Buenos Aires


Crítica de cinema

Otrocampo

El Amante

Tercer Ojo

Leedor.com

Cineismo

Haciendo Cine

Espacio Cine Independiente


Escolas de Cinema:

Universidad del Cine

ORT Argentina

Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica

FADU

Escuela Profesional de Cine de Eliseo Subiela

El Amante Escuela

Centro de Investigación y Experimentación en Video y Cine

Escuela Municipal de Cine

Centro de Investigación Cinematográfica


Festivais:

Festival Internacional de Mar del Plata

Festival de Cine Independente de Buenos Aires

Festival de Direitos Humanos

Festival de Terror e Cine Bizarro

Festival Gay e Lésbico

Festival de Escolas de Cinema

Festival Documentalistas

Festival de Cinema Operário

Festival de Cinema e Cultura Independente

Festival de Cinema Judeu


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