Léo e Bia, de Oswaldo Montenegro (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

Ponte que une e separa os tempos

A primeira impressão que Léo e Bia causa no espectador é de anacronismo: a cena dos protagonistas deitados em roda, discutindo platitudes, lembra algum especial que a Rede Globo não levou ao ar em 1981. Igualmente, o ensaio de teatro como espaço-tempo de descobertas, a amizade simbiótica e a simpatia leve da esquerda festiva – como eles mesmos se denominam – nos remetem a episódios insepultos de "Ciranda, Cirandinha". Mas tudo isso faz sentido, afinal, estamos em Brasília, 1973. E o recorte de local e período não se traduz em ambientação tradicional de época, com figurinos e cenários. O que se busca reconstituir é um pensamento, um estilo de ver-o-mundo. O caráter de pequeninos elos que se romperam, na (des)construção de um passado que sobrevivia esparso na memória, e que ganha corpo no resumo que o diretor-roteirista estreante Oswaldo Montenegro organiza. Assim brota o sentido de déjà vu, de discurso ouvido em priscas eras, de ouriços e transas que poucos teimam em não deixar morrer.

Por falar em "transa", nem a prosódia dos personagens se preocupa em interpretar coisa alguma que não sejam idéias: breve consulta aos alfarrábios de antanho demonstram que em 73, bicho, ninguém "transava com", mas "transava alguma coisa", inclusive gente. Fato é que rapazes e moças parolam alegremente gírias do presente, se vestem como se a Ipanema Secreta fosse logo ali e evitam a fúria da exposição de corpos e libidos, com manias e gestuais pudicos característicos dos anos 2000. Assistir a este balé farsesco, a esta tomada de consciência somente por conceitos delicados, não deixa de ser um pacto com certa honestidade de princípios, com certa ingenuidade também antiga e desaparecida. E se algum mal humorado alegar que o diretor adaptou uma peça de vinte e cinco anos para um "congênere filmado", bem mais justo é esquecermos a peça e olharmos o esforço com ar de ineditismo, sem comparações nem aproximações.

Tanta concessão se aplica pois Léo e Bia é de uma sinceridade que dói, que nos faz ter vergonha alheia, que cutuca nossos ombros e diz um "oi" entusiasmado como aquele primo tolo de Niterói ou Mogi das Cruzes, ausente da família há uns bons anos. Não é de se duvidar que faça boa bilheteria, caia no gosto do público, por conta da vontade autêntica de sobreviver obcecado em seu próprio universo de impressões limitadas. E, ao não oferecer qualquer margem de pensamento além do atrelado aos chavões – gratos ao momento histórico – faz isso de forma atraente, bonita. Refoga um pedacinho de utopia e nos serve de novo à mesa, quentinho. Pena que junto com ele engolimos sapos-estereótipos – a mãe dominadora (Françoise Forton) de Bia (Fernanda Nobre) é desconcertante – além de ressaca moralista ao estilo do Geninho, aquele serzinho fabuloso que, no final de cada episódio do desenho “She-Ra”, despontava para dar conselhos edificantes à criançada. Nesses mecanismos simplórios, que nem Reich nem Roberto Freire deram jeito de curar, boas intenções quase se perdem, tolerância e desapego ganham uma agressividade dissimulada, e defeitos tornam-se evidentes.

Ok, limpe toda a indumentária, permita no galpão somente instrumentos, fios, bancos e telas, mas um filme sobre jovens ambientado nos anos 70 onde ninguém trepa, não é um filme sério sobre jovens ambientado nos anos 70. Embora indícios aconteçam – Cachorrinha (Vitória Frate), namorada de Brooke (Ivan Mendes), engravida – falta o mesmerismo ideológico, marcusiano (e, no Brasil, esculhambativo, anti-ditadura, pornochanchadeiro) que o sexo adquiria. Igualmente, a questão das drogas, jujubas da espera pelas delícias de Aquário, é somente arranhada. Por isso, cada vez que consolam uns aos outros, cada vez que Marina (Paloma Duarte) dá sermões chatos no grupo e idolatra Cabelo (Pedro Cartano), mais soam previsíveis, maniqueístas, unidimensionais. Se o leitor quiser não gostar de Léo e Bia, se não quiser comprar o pacote de felicidade instantânea descendo de Brasília rumo ao Rio de Janeiro, bem provável que o faça por não acreditar nesta comunhão tão piorada pela falta de recursos, o revés politicamente correto e a laboriosa preguiça intelectual. Acontece que amar o teatro, reagir como Léo (Emílio Dantas) e escrever uma peça depois de censurado, ou virar hippie de boutique com todo o conforto, são tentações maravilhosas. E é nisso que o filme consegue mexer, insistir. Embriaguez juvenil de se cortar com cacos de sonho, novamente e novamente.

Setembro de 2010

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