in loco - 4o cineop Lingston
Perli Cherliê, de Bernard Belisário (Brasil, 2009) por
Rodrigo de Oliveira O "eu" em
moto-contínuoJá
quase no final de Lingston Perli Cherliê veremos o protagonista do filme
na tão corrente posição de entrevistado cabeça-falante (pouquíssimo comum neste
caso específico, aliás), dizendo que tudo não passa de “mais um documentário de
alguém que você não conhecia”. A questão não é exatamente da proximidade maior
ou menor que o filme mantenha com uma linha documental da gente comum que, quando
observada de perto, torna-se extraordinária – ainda que Bernard Belisário incorra
inevitavelmente nisso. O que se coloca é a impossibilidade de se conhecer de fato
quem é este tal Levindo Pereira da Silva, ou o personagem que ele inventa para
si e que dá nome ao filme. Não é o caso de bipolaridade inventiva e voluntária,
nem do fetiche pelo ser-um-outro que o cinema naturalmente proporciona, mas essa
chance que Lingston Perli Cherliê dá a seu protagonista se transformar
em processo, e aí é menos um quociente dramático interior à cena e de responsabilidade
exclusiva dessa figura cambiante, e mais simplesmente a maneira como se filma
este homem. Levindo é mais um desses milhares de apaixonados
pelo cinema escondidos pelo país que, em algum momento entre a descoberta dessa
paixão e a possibilidade de realizá-la através da facilidade de acesso a equipamentos
de registro, se pega experimentando a vida e o contato com outras pessoas e situações
com um olho completamente contaminado pelo registro fílmico, como se não houvesse
outra maneira de testemunhar o mundo a não ser filmando-o. É assim que somos introduzidos
a seu universo em textura VHS, com uma filmagem caseira de uma cena banal (uma
mulher filmada de longe, com quem se mantém uma conversa, e uma criança insistente
a interromper o fluxo dessa narrativa improvisada). Logo passaremos ao presente,
onde esta mesma criança, já um menino crescido e minimamente consciente do espaço
farsesco aberto pelo registro da câmera, entra num jogo de auto-ficção com Levindo,
rememorando aquelas imagens perdidas no passado e revividas através de sua exibição.
Insistentemente, Levindo pergunta ao menino “quem é você?”, no que ele responde
sempre com o nome completo. Pedro e Levindo parecem só existir como personagens
de ficção uma vez que a pompa do nome de batismo seja revelada, e aquilo que supostamente
atestaria a realidade de cada um (origens, família, marcas de um RG “do mundo
real) é exatamente onde sua invenção pode agir. Logo Levindo vira Lingston, logo
Pedro vira Pedro-personagem. O filme acaba não resistindo
aos momentos de puro making of, onde a suspensão metalingüística se anuncia
de maneira muito óbvia (um quadro vazio que só vira espaço cênico quando alguém
grita “ação”, a câmera do documentário que filma a equipe se preparando em torno
da câmera ficção), mas é quando permite que esta mudança de registro aconteça
na duração de um mesmo plano ininterrupto e sem avisos prévios que Lingston
Perli Cherliê ganha força. Gênio louco, inventor visionário, ator nunca descoberto,
Levindo tenta diferenciar o que é uma lembrança “genuína” e uma lembrança vinda
da revisão de um registro em vídeo, mas a todo tempo sua auto mise-en-scène
nega a existência dessas fronteiras. E Bernard Belisário não podia responder a
essa entrega sempre fugidia, nunca exatamente afirmativa, emprestando a Levindo
uma única certeza: a de que há ali um cineasta que, mesmo involuntário, esteve
sempre muito próximo de um contato frontal com essa arte que talvez nem saiba
que domine. Retomando imagens feitas por Levindo de um acidente na linha de trem
que cruza seu bairro, vemos uma explosão de grandes proporções, chamas enormes
e uma fumaça preta que cria formas incríveis no céu. O trabalho dos bombeiros,
a curiosidade dos moradores, a destruição do vagão incendiado, tudo isso já estava
ali, decupado, ritmado pelo registro de Levindo. E essas imagens estavam apenas
a um Réquiem do Mozart de distância de se tornarem cinema puro e incrivelmente
expressivo, e é com o Réquiem que o filme gentilmente retribui a chance
que Levindo nos dá de continuar não o conhecendo. Julho
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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