Reflexões de um Liquidificador,
de André Klotzel (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond
Singela
insanidade
Objetos ou entes irracionais
com vida própria não necessariamente transpiram originalidade.
Seja o séquito de Alice – criado por Charles Dodgson, vulgo
Lewis Carroll, para impressionar a pequenina Alice Liddell –,
seja a barata de A Metamorfose – escrita pelo amigo do
nosso Otto Maria Carpeaux –; sejam os animais de George Orwell,
na metáfora sobre controle estatal. Os exemplos são inúmeros e
carregam a tendência de colocarem naturalidade aonde ela inexiste.
Pois aqui, um copo de vidro acoplado numa base de metal, velho
e cheio de limo, serve de melhor amigo para a pacata Elvira (Ana
Lúcia Torre), que aliás também manja de taxidermia nas horas vagas.
O Liquidificador – notem a inicial maiúscula – é o narrador da
história. Selton Mello (servindo de cavalo às avessas) dubla o
objeto retrô-setentista, cujos diálogos com a dona de casa – única
a ouvi-lo – deixam claro o entendimento entre ambos. Na realidade,
o fato de o Liquidificador charlar e delirar poeticamente colocam-no
como um incauto, espécie de consciência da senhora pacata que
se descobre facínora.
O
eletrodoméstico, este totem, acompanha Elvira desde os tempos
em que ainda comandava um bar no centrão de São Paulo, com o marido,
Onofre (Germano Haiut). Ladeando o esposo e o camarada, outros
personagens trafegam pelo elenco. Milena (Fabiula Nascimento,
de Estômago) encarna a vizinha boazuda que sofre de frêmitos
por homens hirsutos. Fuinha (Aramis Trindade), o policial no meio-termo
entre Sérgio Paranhos Fleury e Inspetor Clouzot – dessem a ele
uma bolinha para arremessar contra o chão enquanto caminhasse
e estaria coberto por uma tentativa de giallo. O aspecto
surreal da mulher lembra o das velhinhas homicidas de Arsenic
and Old Lace – peça teatral filmada por Frank Capra em 1944
(traduzido aqui como Esse Mundo é Um Hospício). Vá lá que
o ritmo era mais apressado e a dupla cometia as barbaridades às
claras, num humor negro que levava o mocetão Cary Grant à loucura,
com o envenenamento em série de desavisados. Ainda assim, mexer
com a superfície falsamente frágil de senhoras de idade é um ingrediente
que rende resultados. Fora das telas, atire a primeira pedra quem
não vibrou com as peripécias da vovó que, filmadora em punho,
denunciou o tráfico a partir da janela, na sala de estar?
Ultrapassada a idéia inicial, porém, os maiores
deslizes de Reflexões de um Liquidificador estão justamente
na piada-base – que perde um pouco do punch que poderia
ter – e no fim mal resolvido, aberto, que não junta as pontas
do enredo. Parte-se para uma inferência, quando pouco antes o
excesso aparecera de maneira previsível e repentina, para chocar
a platéia que acompanhava o rocambole de Elvira. Interessante
que as últimas frases do Liquidificador remetem ligeiramente ao
lirismo maroto de Marvada Carne (obra que emprestou a Klotzel
seu papel reconhecido no cinema nacional), no qual Fernanda Torres
e Dionísio Azevedo travavam uma novilíngua, cercados dos arquétipos
do Brasil rural – como o cramulhão sertanejo (Regina Casé) e as
recriações dos quadros de Almeida Júnior. Passados vinte e tantos
anos, Reflexões de um Liquidificador encerra o seu causo
eufórico, com versos como “canta, meu curió”, percebendo-se um
acento que deixa a urbanidade da trama quebrada, singela demais
para o clima cinzento da São Paulo do arrabalde.
Setembro de 2010
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