in loco - cobertura dos festivais
Liverpool (idem), de Lisandro Alonso (Argentina/Holanda/França/Espanha/Alemanha,
2008) por Rodrigo de Oliveira Fim
da linha
Já se disse muito a respeito deste cinema que
Liverpool parece defender tão ardorosamente: o elogio do banal levado ao
paroxismo, os enquadramentos no-nível-da-mesa, um registro mais próximo da etnografia
que da ficção narrativa, o silêncio como espaço sagrado do sentido (há sempre
um sentido esperando para ser descoberto), todas essas definições de almanaque
que fizeram da noção de “cinema contemporâneo” esse saco de gatos tão promotor
de modelos quanto as noções clássicas de dramaturgia e forma a que pareciam inicialmente
se opor. Na verdade, se há um beco sem saída aí ele não está no modelo exaurido,
mas justamente no fato de que nem mesmo toda a rarefação estética e emocional
pôde prescindir de certas convenções, de alguns sistemas tradicionais de apreensão
da cena. Para Lisandro Alonso a plataforma sempre foi o
personagem e todas as suas implicações. Do jovem lenhador de La Libertad
(2001) ao ex-presidiário em Los Muertos (2004), o que esteve em jogo foi
um regime estético que forçasse o engajamento do espectador com os protagonistas,
agora numa outra ordem que não a da simples identificação. Engajar, para além
da banalização política do termo, é aliciar: conquistar pela sedução, pela disposição
hipnótica de atrativos. Mas num ambiente cênico que foi despido de qualquer atração,
onde as ações não geram conseqüências, onde a psicologia foi abandonada em nome
da anatomia dos eventos, a hipnose não poderia estar em outro lugar que não no
próprio dispositivo. Mais que um exercício voyeurístico, os filmes de Alonso eram
peças de enfado e irritação programadas. Antes mesmo de aderir ou rejeitar, era
importante se acostumar ao personagem. O domínio que o rigor da câmera
e dos enquadramentos exercia sobre os corpos tinha a função de torná-los tão colados
à cena que, em algum momento, eles deixassem de se diferenciar dela. Homens como
fenômenos naturais, mergulhados em ambientes naturais por uma relação simbiótica
explícita e terrena, nada transcendente. Tudo parte de um projeto, é claro: alimentar
ao máximo um dispositivo para tornar ainda mais potente o momento em que o filme
finalmente se descole dele – em La Libertad, o belíssimo plano do “ponto-de-vista
da abelha”, quando o lenhador é abandonado pela câmera dentro de sua cabana escura,
para que esta sobrevoe toda a floresta em que ele trabalha; em Los Muertos
o close final na terra, enquanto o ex-presidiário caminha para um fora-de-campo
onde vai liberar seus instintos encarcerados por anos de prisão e horas de travellings.
Liverpool é, neste sentido, o fim de um percurso
programático. Não por acaso, sua substância fundamental é também aquela característica
mais repreensível de Lisandro Alonso enquanto cineasta: um filme sobre a dor e
a delícia de ser dispersivo. Contra todo o corolário do plano fixo de longa duração,
Alonso sempre teve um gosto pelo movimento panorâmico da câmera – e ele muitas
vezes levava a lugar nenhum. Parte do projeto de costume e liberação, estes desvios
do olhar do filme revelavam não mais que alguma paisagem bonita ou um elemento
pitoresco qualquer, uma espécie de déficit de atenção num dispositivo que talvez
não acreditasse tanto assim em sua força e, por isso mesmo, parecia sempre a um
ponto de fraquejar. Pois em Liverpool, o cinema guiado-por-personagem
parece ter chegado ao limite. O marinheiro Farrel é o protagonista mais tradicionalmente
construído de Alonso até aqui: todos os seus movimentos, todas as informações
de caráter que surgem em conversas aparentemente informais e conduzidas por não-atores
que as tornam ainda mais “naturais”, o percurso muito delimitado de sua personalidade
(abandonou a família há muitos anos, está
resignado em seu emprego, bebe compulsivamente, entra num strip-club na primeira
oportunidade que tem), tudo isto se acumula muito explicitamente em torno daquela
mesma idéia de assimilação por costume, pela insistência da presença daquele homem
em cena até que ela se naturalize. Mas o fato é que Liverpool anuncia o
tempo inteiro que a figura de Farrel é muito mais volátil do que se poderia supor,
e são inúmeros os momentos em que é da sua ausência que o filme quer se nutrir.
Nem mesmo quando lidava com um ex-presidiário que havia assassinado seus irmãos
Alonso foi tão pernicioso: sobre Farrel paira uma suspeita incontornável, uma
sensação de culpa-no-cartório que o acompanha mesmo quando ainda não sabemos de
que se trata. A fuga do olhar não é mais um capricho, é uma declaração de princípios.
Não há mais silêncio castrador ou emoção suprimida que esconda que a questão é
moral, pura e simplesmente. E de reprovação moral. Assim,
se nos filmes anteriores a encenação nos acostumava à idéia de precisarmos daquelas
pessoas mesmo quando não sabíamos exatamente o porquê, Liverpool trabalha
o tempo inteiro para tornar Farrel uma figura dispensável. É como se o estilo
criado para si tivesse amarrado Lisandro Alonso a tal ponto que fosse preciso
um filme em que o abandono de um personagem não fosse apenas metafórico ou filosófico,
mas literal. Para um cineasta que caminhava firmemente para o pior tipo de auto-reverência
(Fantasma, seu filme anterior, é uma peça publicitária sobre o protagonista
de Los Muertos indo ao cinema para ver-se na tela), soa como uma quase
surpresa a disposição que Liverpool tem de promover confrontos, de dizer
coisas sobre os objetos que filma, de ter idéias sobre eles e deixá-las evidentes,
sem se esconder por trás do registro documental que lava as mãos para qualquer
sentimento que ameace surgir com mais intensidade. No entanto, armadilha das armadilhas,
uma vez que Alonso retira de seu cinema aquilo que o movia até aqui, o que sobra
não é mais que um empilhado de clichês há muito tempo cartografados pelo drama
narrativo clássico. Se é por aí que o diretor seguirá, pelo investimento mais
dedicado às convenções de gênero, ou por algum outro caminho que radicalize algumas
das mais potentes imagens que produzira anteriormente (em La Libertad sobretudo),
isso é impossível antecipar. Mas Liverpool é o funeral consciente de um
estilo, de um projeto de cinema e de uma visão do mundo. Retornar a ele seria
negar ao filme sua maior qualidade: a de reconhecer a fragilidade de seus próprios
métodos. Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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