in loco - cobertura dos festivais
Longe do Afeganistão (Far From Afghanistan),
de John Gianvito, Jon Jost, Soon Mi Yoo, Minda Martin e Travis Wilkerson (EUA, 2012)
por Filipe Furtado

Representar um discurso

Longe do Afeganistão, como o nome já deixa claro, foi inspirado pelo desejo do cineasta e crítico americano John Gianvito de realizar um filme similar ao Longe do Vietnã, que Chris Marker organizou no final dos anos 1960. A invasão americana ao Afeganistão completou mais de dez anos (ultrapassando o Vietnã como a guerra mais longa que o exército americano esteve envolvido) e, eclipsada pela Guerra do Iraque, segue subcoberta pela imprensa (e cinema) americana. É evidentemente fácil simpatizar com Longe do Afeganistão pelas suas boas intenções, mas o filme é mais interessante justamente quando pensado sobre o que significa realizar um cinema abertamente político nos EUA – cinematografia em que o pensamento político mais direto surge quase invariavelmente no contrabando de um George Romero, ou pelo cinema de má consciência, como nos filmes de um George Clooney – e, de forma ainda mais central, expressar um desejo de dar uma representação para um pensamento radical que existe bem distante do bipartidarismo americano – algo especialmente relevante para nós brasileiros, dado o visível desejo de parte de nossa imprensa em tentar transformar nosso debate político na mesma dicotomia pouco produtiva que já domina o debate americano.

Uma das vantagens inegáveis de Longe do Afeganistão para a grande maioria dos filmes em episódios é que, assim como em Longe do Vietnã, o projeto nasceu de um cineasta e não de um produtor. É Gianvito quem garante que o filme se construa como um filme completo e não somente uma série de encomendas. Gianvito convidou outros quatro cineastas ligados a setores mais engajados da esquerda americana (Travis Wilkerson, Jon Jost, Minda Martin e Soon-Mi Yoo) e o grupo afegão Afghan Voices, que realiza um trabalho de oficinas de cinema no seu país aos moldes do realizado por aqui pelo Kinoforum, para contribuírem com seu filme. O material afegão, organizado pelo proprio Gianvito, corresponde às sequencias mais convencionais do filme, mas não só cumpre uma função importante de reportagem (dada a má cobertura da imprensa), como descentraliza o filme e contrapõe o conteúdo e preocupações essencialmente americanos dos cinco episódios (dentro da preocupação godardiana de Gianvito sobre a representação do outro com ecos do Ici Et Ailleurs).

Os episódios em si trazem consigo a irregularidade inevitável de um projeto como este, apesar de todos eles exibirem um desejo e empenho ausentes na maioria dos filmes coletivos. Pode-se dizer que há abismos de talento entre os envolvidos em Longe do Afeganistão e que nem todos tragam grandes ideias, mas não se pode acusar qualquer um dos cineastas envolvidos de burocracia. Mesmo os menos interessantes episódios buscam uma representação frontal e materialista das questões que os cineastas buscam a partir da invasão, em particular o mesmo ciclo de desinformação e desperdício de recursos e vidas.

The Long Distance Operator de Minda Martin, o mais convencional de todos, tem uma construção que busca reproduzir a lógica de distanciamento em camadas da responsabilidade (dos soldados que precisam patrulhar as ruas após o bombardeio, passando pelo operador de bombas que trabalha a distância e seus nunca vistos superiores) que mantém certa complexidade. É curioso que, como acontecia em Longe do Vietnã, o episódio que flerta mais diretamente com ficção (a despeito do uso de veteranos de guerra como atores e de material de bombardeio vazado pelo Wikileaks) se revela o mais frágil - talvez porque Martin, superconsciente de não criar uma simples narrativa de culpa do herói positivo, nunca consiga se debruçar a fundo na sua construção dramática, que termina um esboço. 

Há um problema similar em Afghanistan: The Next Generation, de Soon Mi-Yoo, que combina material de arquivo americano sobre a invasão do país pelos soviéticos nos anos 1980 com cenas recentes. Há uma inegável força nessa sobreposição, mas o filme tateia muito, como se temesse manipular por demais seu material, nunca conseguindo alcançar toda a expressão que ele permite. Jon Jost, um nome bem mais estabelecido do que Martin e Soon, passou boa parte dos últimos anos realizando filmes como Over Here, que buscavam registrar os efeitos das duas guerras americanas no Oriente Médio no país. A sua contribuição aqui, Empire Cross, tenta justamente lidar com a ideia da tragédia que é o desvio dos recursos para a indústria bélica, a partir da combinação de um antigo discurso de Dwight Eisenhower com material de bombardeio e imagens de Guerra como espetáculo – como estes recursos se dissipam e como este desperdício se justifica. Se o filme não chega a ser um sucesso, é justamente porque a justaposição é um tanto fechada no seu conceito, e a ideia de desperdício permanece teórica, e não material.

Os dois episódios mais fortes são justamente o primeiro e o último, de autoria do próprio Gianvito e Travis Wilkerson. My Heart Swims in Blood, o curta de Gianvito, é ao mesmo tempo exemplar e muito expositivo de possíveis armadilhas do discurso político em cinema. Trata-se de uma colagem de imagens do cotidiano da vida americana, sequências de um homem (interpretado pelo diretor de teatro Andre Gregory) tentando dormir e cenas de natureza, focadas sobretudo numa coruja observado o fora de quadro, com off de informações sobre o conflito no Afeganistão. Ao contrário do filme do Jost, a justaposição aqui consegue atingir com precisão a sensação de desconexão e desperdício que o cineasta deseja. A montagem de Gianvito sobrepõe imagens com um olhar cortante muito eficaz. É impossível negar a honestidade da frustração do diretor, ao mesmo tempo difícil não desejar que o cineasta fosse um pouco mais rigoroso na construção do seu discurso, evitando algumas imagens fáceis. Qual o ponto em que a raiva deságua numa retórica que gira em falso? Seria preciso mesmo incluir um plano de um salão de beleza, ou ele simplesmente sobrecarrega o discurso já mais do que claro do filme? My Heart Swims in Blood é uma expressão muito potente de frustração do seu realizador e tem muitos momentos poderosos de cinema, mas como discurso político é não só de questionável eficácia como um tanto frágil na mão pesada em sua articulação. O impacto do filme se dissipa um pouco diante do peso da retórica empregada.

Melhor sucedido – e certamente um dos filmes mais impactantes de toda a Mostra – Fragments of Dissolution, de Travis Wilkerson, é ao mesmo tempo de uma sutileza e rigor notáveis. O filme de Wilkerson não poderia ser mais simples: quatro depoimentos de mulheres que perderam entes queridos recentemente – a esposa e a mãe de dois soldados que se suicidaram e a irmã e a mãe de pessoas que morreram em incêndios causados por ligações elétricas clandestinas – ligados por uma montagem que sabe que não precisa forçar relações entre os quatro relatos para chegar a uma relação dialética entre formas variadas de negligência e abuso. A lógica pressupõe que todos os casos serão sempre vistos somente como estatísticas, mas Wilkerson trabalha no sentido de garantir devolver a eles suas individualidades. O filme procura modular os quatro relatos de forma que eles alcancem força por si mesmos, e nunca pareçam só mais uma peça para um discurso maior, enquanto sua apresentação austera reforça o impacto deles.

Fragments of Dissolution sabe que não precisa forçar para que a conexão maior entre eles brote da ideia de que o exército que busca alistar soldados pela promessa de uma melhoria de condições financeiras, independente de eles estarem preparados para o serviço militar, e das companhias de energia mais do que dispostas a promover cortes no meio do inverno severo integram o mesmo circulo de exploração de uma população falida. É o episódio de Longe do Afeganistão que melhor resolve sua procura por uma forma de representação para a desconexão entre um país incapaz de se reconhecer numa profunda crise interna e uma guerra invisível que já se arrasta por uma década. Se Longe do Afeganistão não deixa de ser um filme sobre o visível que permanece constantemente obscurecido por um complexo midiático cujo discurso não se interessa por ele, é somente no episódio de Wilkerson que ele consegue chegar até este visível com força e fazer valer seu desejo de encontrar uma forma arejada para seu discurso político.

Novembro de 2012

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