nas locadoras
Sede de Viver (Lust for Life), de Vincente Minelli (EUA, 1956) por
Diego Assunção
Uma rachadura sobre o sol: Van Gogh por Minelli Sede
de Viver começa com a música de Miklós Rózsa,
que remete ao cinema dos grandes épicos – Cecil B. DeMille talvez. A música é
acompanhada de um procedimento que não fica atrás em termos de grandiosidade:
um zoom no quadro “O Semeador”, de Van Gogh, o artista biografado no filme. A
aproximação ótica é feita em direção ao sol, situado acima do semeador da pintura.
Quando todo o quadro cinematográfico é tomado pela figura solar, o galho da árvore
pintado sobre a figura se torna uma imensa rachadura. Sobre ela que o título do
filme, “Lust for Life”, é inscrito. Seria este Sede
de Viver mais uma daquelas biografias que, de tão respeitosa, torna o biografado
uma espécie de figura divina? A cena que inicia o filme, passada numa espécie
de convento, poderia reforçar a idéia, mas Vincente Minnelli logo afasta o espectador
dessa impressão. O que se segue é uma reunião de pastores, homens a seguir mais
um protocolo. Não há grandiosidade na forma como o diretor desenrola a cena. Os
pastores dispensam dois jovens calouros, a porta se abre. Por entre ela se vê
Van Gogh (Kirk Douglas) sentado num banco, nervosamente encolhido, esperando a
sua vez de ser chamado. Apenas pelo modo como Douglas se encolhe no banco (de
lado e com a cabeça baixa) e na forma como sua atuação se inscreve no centro do
quadro (pelo reenquadramento rigoroso feito por Minnelli), nota-se a real intenção
da música grandiloqüente do compositor tocada no início e do zoom: não
interessava “pintar” o artista como uma divindade, mas conseguir dar conta, cinematograficamente,
da intensidade e peso da vida que recaíram sobre os ombros do jovem Vincent. Douglas
se levanta para conversar com as autoridades religiosas. Quando tem a vez da palavra,
o ator gesticula como se pudesse mover o mundo com os seus braços. Argumenta,
corporalmente, como se estivesse dando as primeiras pinceladas num painel em branco.
Ele quer servir de alguma maneira a humanidade. Ele quer entendê-la. A paixão
pela vida o leva para os caminhos tortuosos da arte. A
vida é indissociável da arte, e vice-versa. O protagonista acredita nessa afirmação.
E sendo esse o pensamento de Van Gogh, Minnelli faz brilhantemente o uso constante
de reproduções dos quadros do pintor. Ele as filma com o intuito de captar os
sentimentos conflitantes e as crises emocionais que acompanharam a vida do artista
holandês, pondo a seguinte questão: existiriam as cores alegres em “Quarto
em Arles” sem a excitação de ter encontrado um novo lugar para morar, longe
das convenções do ambiente familiar ou das frivolidades parisienses (onde vivia
seu irmão Theo)? Por outro lado, inexistiram crises se a natureza não insistisse
em colocar novos elementos a serem trabalhados a cada pincelada de Van Gogh no
quadro “Campo de trigos com Corvos”? “Capturar gestos
e não mãos, expressões e não rostos”. Não seriam essas palavras belas definições
para o termo mise en scène? Poderia haver melhor cineasta do que Vincente
Minnelli para dar vida a essas linhas de diálogos? Afinal, não era exatamente
isso que ele realizara no musical Agora Seremos Felizes (de 1944), na cena
em que um velhinho, ao dançar com sua neta adolescente, é substituído magicamente
pelo pretendente da moça: em plano-seqüência, apenas utilizando o espaço cênico
– uma árvore enfeitada no hall do casarão – e com um simples movimento de câmera
junto ao movimento dos corpos dos atores. Ali, Minnelli dava vida ao tema do filme:
o inevitável envelhecimento de uma cidade (St. Louis), e conseqüentemente o processo
de renovação que passaria – e também fazia ali a passagem do cinema clássico para
o moderno. Pois aqui a pergunta que se impunha era: como
colocar em cena as angústias do artista, como organizá-las em um cenário e dispô-las
no enquadramento? Como fazer tudo isso através do cinema, sem acabar “explicando”
simploriamente o artista, como um psicólogo de botequim? Primeiro:
não parece interessar a Minnelli os passos sórdidos ou as anedotas da vida do
artista. Não parece excitá-lo a literalidade oferecida pelas descrições. Se o
cineasta acompanha os episódios da vida de Van Gogh, seguindo um rígido itinerário
dos lugares habitados por ele, ele não encerra um ponto para começar outro sem
antes retirar de cada um desses lugares (a cidadezinha carvoeira, Paris ou Arles)
um olhar que ele acredita estar muito próximo do olhado por seu personagem. Os
movimentos temerosos da câmera e a pouca iluminação quando o personagem visita,
pela primeira vez, a mina de carvão estão lá porque é essa a forma encontrada
por Minnelli de se aproximar dos primeiros desenhos em grafite que Vincent faz
no seu aposento, enquanto ainda trabalha como mensageiro evangélico. Se os contornos
expressionistas e a explosão de cores caracterizam o trabalho de Van Gogh no período
em Arles, Minnelli retoma alguns elementos dos filmes musicais que realizara anos
antes para atingir o mesmo êxtase do pintor – a encenação das brigas nos bares,
protagonizadas por ciganos exageradamente adornados, por exemplo, parece saída
do “O Pirata”, de 1948. Mas
talvez não haja um plano melhor para sintetizar o filme do que o que encerra a
obra: após Vincent Van Gogh morrer no leito de um hospital, ao lado do querido
irmão Theo, o espectador é levado a um plano em que a câmera está fixada num dos
auto-retratos feitos pelo artista. A câmera se afasta, revelando um mosaico com
várias das obras realizadas pelo pintor. Van Gogh morreu miserável, mas sua obra
permaneceu e tornou-se gloriosa. O plano final é o inverso dos créditos iniciais,
mas eles se completam. Aquele zoom in inicial, com a inscrição do título
sobre a rachadura no sol, deixava entrever que Minnelli pensava no seu personagem
como um homem frágil, mas também capaz de deixar fissuras no mundo (no sol). O
plano final, a abertura para toda a obra de Van Gogh, mostra a grandiosidade do
seu legado. editoria@revistacinetica.com.br
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