in loco - III jornada de cinema silencioso
A criação da maldade
por Lila Foster

As histórias dos homens maus e das suas vítimas têm um apelo evidente, e as particularidades do cinema silencioso fizeram do personagem cruel algo além da mera fábula moral ou ética. As mãos contorcidas, a maquiagem que acentua feições, o tingimento mais escuro ou um vermelho gritante quando o vilão entra em cena, tudo isso é alçado a um nível que hoje chamaríamos de exagero. Visualmente, o vilão, o homem em desgraça e o assassino são potências em si e muitos filmes do período engendram na composição visual o conflito entre a maldade e a bondade.

Alguns filmes da Jornada do Cinema Silencioso de 2009 apresentavam a maldade de maneira mais fabular e, por isso, também com mais truques, como foi o caso de Balaú (Victorin-Hippolyte Jasset, 1913) e O Solar do Medo (Alfred Machin e Henry Wulschleger, 1927 - foto acima). Nos dois filmes, os personagens principais são dois macacos guiados para o furto e para o terror pelos seus donos cientistas. No primeiro, criando uma impressão bem esquisita, o macaco é representado por um homem com a cara pintada. No segundo, o macaco é real. Em O Solar do Medo, a cena mais fantástica é uma rápida montagem com variações de cores do diabo com o tridente em suas mãos, imagem criada pela fantasia dos moradores assustados com a onda de crimes em sua vila.

Fora do registro fabular, o nível da maldade parece ser muito mais acentuado ou passa por menos mediações. Se não podemos falar necessariamente que os filmes rompem tabus de representação, eles ao menos tratam de forma mais crua dilemas e comportamentos que deixaram de ser comumente representados. Nesse sentido, podemos destacar dois filmes: De Volta à Terra de Deus (Nell Shipman, 1919) e O Homem do Mar (Marcel L’Herbier, 1920 - foto acima). No primeiro, a vida de um pai e uma filha, que vivem no campo em plena harmonia com a natureza, é ameaçada pelo assédio de um bandido disfarçado de policial. A terra isolada só aumenta a tensão da primeira cena em que o algoz encontra a sua vítima. Dolores, interpretada pela própria diretora Nell Shipman, toma banho de cachoeira, nua, quando o bandido e seu comparsa a avistam. A feição do bandido, os seus cabelos desgrenhados e os olhos arregalados em direção ao seu objeto de desejo bastam para que o seu desejo se torne evidente. A nudez feminina, sempre um ponto a ser destacado quando fora do cinema pornográfico, somente destaca a força da violência que pode seguir.

A ameaça de violência sexual não se completa, mas ela o permeará todo o filme, pois a posse de Dolores se tornará a obsessão do malfeitor. A história, seguida de morte e tragédias, nos levará para o Alasca, local em que o malfeitor aprisiona Dolores e seu novo marido em um navio que deve passar o inverno atracado por conta da formação de gelo. Dolores será ameaçada a todo o momento, e é chocante a cena em que os marinheiros em festa assediam violentamente jovens esquimós as agarrando e oferecendo presentes. Não existe qualquer “disfarce” para o clima de ameaça física, de estupro iminente, em que as mulheres estão mergulhadas. Neste mesmo aspecto, vale a breve lembrança de uma cena também marcante de A Costureirinha (Émile-Bernard Donatien, 1929). Durante uma festa de carnaval em que todos estão parcialmente fantasiados e nus, uma mulher é posta no meio de uma roda e, à sua revelia, é obrigada a dançar com os seus seios a vista. Às vezes é espantoso o quão moralista o cinema se tornou na sua forma de mostrar o corpo e/ou a violência.

O Homem do Mar opera em outro nível de violência, aquela engendrada dentro da própria família. Noiff protege o seu filho excessivamente até que ele se torna um adolescente inconseqüente, como se fosse um inimigo criado pelos mimos do pai. Toda a iconografia religiosa que aparece no filme denota a gravidade do erro no qual o pai incorreu, e o rompimento radical da “lei da família” quando o filho, em um arroubo de loucura e paixão por uma mulher, negligencia o momento da morte da mãe e agride a própria irmã. As agressões e o descaso do filho rebelde trazem uma crueldade também assustadora. A tragédia acontece exatamente porque se torna inaceitável o fato do filho ser o próprio malfeitor, e o pai se castigará por isso. Por não se tratar de uma simples oposição entre o mal e o bem, já que a maldade do filho reflete de maneira invertida o amor depositado pela família, a sua existência se torna insuportável.

A intensidade da violência nos dois casos reforça a necessidade de paz ou alento buscada pelos outros personagens: Dolores encontra o seu refúgio na natureza, Noiff no mar e sua filha na religião. A oposição entre o mal e o bem, na medida em que suas características se intensificam, parece evidenciar que antes de narrar é preciso fixar a imagem de cada uma dessas “entidades”. O estilo direto denota um estado puro de maldade, talvez inspirada em tipos da literatura, já que quase todos os filmes citados foram inspirados em livros. Mesmo assim, a maldade arquetípica ainda é capaz de perturbar o espectador contemporâneo, mesmo mergulhado em outro tipo de representação da violência.

Setembro de 2009

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