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Mamães e putas
por Diego Assunção

La maman et la putain, de Jean Eustache (França, 1973)
Beija-Me, Idiota (Kiss Me, Stupid), de Billy Wilder (EUA, 1964)


Dois filmes aparentemente distintos que se relacionam formidavelmente. Não tão distantes, pois são obras preocupadas com a questão da tênue linha que separa a representação da mulher enquanto mãe e puta. Mas para além das mães e putas, esses dois filmes são sobre personagens que encenam situações que, por serem levadas ao extremo, se tornam manifestações da realidade. A única possível, a realidade do cinema.

Jean-Pierre Leaud ora incorpora Antoine Doinel, ora o estudante maoísta de A Chinesa. Seu personagem em La maman et la putain, Alexander, utiliza-se de gestos do cinema para arrumar a cama e filosofar sobre a vida. A questão abordada pelo filme de Jean Eustache é primordialmente como um bom imitador de Jean-Paul Belmondo é capaz de ser mais verdadeiro do que o próprio Belmondo, por não ter a qualidade da mitificação.

La maman et la putain é a imitação de um plano de Murnau, é a imitação de um movimento de Godard, de um flerte de Truffaut, enfim, o que Eustache extrai disso tudo é nada menos do que o encadeamento de clichês assombrados que se desnudam de qualquer mitificação. Resultam num cinema duro, e puro.


Beija-me, Idiota
tem Dean Martin imitando sua própria persona. Dino é a caricatura de Dean Martin (o famoso mulherengo e esbanjador) que, de tanto imitar a si próprio, perdeu sua essência. Tornando-se menor do que seus imitadores, virou um clichê. Já o ciumento compositor fracassado, feito por Ray Walston, vive a criar músicas que nada mais são que imitações das canções macarrônicas de Dino. Ao receber o artista em sua casa e encenar um triângulo amoroso com uma prostituta (Kim Novak), que não é sua esposa, Walston consegue tirar dessa situação cômica, e de suas imitações, a verdade de sua vida.

A encenação é tão forte que a prostituta passa a crer ser mesmo esposa de Walston. E Walston, que a usou para dar um golpe em Martin (ceder a esposa, que na verdade não era a sua, para conseguir lhe vender algumas músicas), acaba tendo um de seus ataques de ciúmes e expulsa Dino para recuperar sua esposa, a prostituta. O filme de Billy Wilder é a vulgarização do que havia feito até então. Em Beija-me, Idiota, o cineasta não mais parece preocupado com as viradas geniais de seu roteiro, pois sua câmera, o uso do cinemascope, se instala na pequena casa de Ray Walston para dali tirar dessa vulgarização, imitação, uma autenticidade.

Autenticidade colocada à prova nos dois filmes, em momentos de transe, náusea, dos personagens que levam a uma revelação:


Em La maman et la putain, ouvindo uma música de Edith Piaf, Françoise Lebrun chora, revelando que, por trás dos jogos amorosos, realmente ama Leaud, enquanto o rapaz entra num transe demencial.

Em Beija-me, Idiota, Kim Novak se derrete por Walston (contrariando todas as expectativas de que se agarraria ao boa-pinta Dino) quando ele toca a canção que escreveu pra sua esposa, enquanto o marido, tão demente quanto Leaud, só pensa em entregar sua falsa esposa para Dino.

As proximidades entre o filme de Wilder e Eustache estão na superfície e no ponto de partida dos filmes. Porém elas vão além, pois são inter-relações alquímicas, daquelas que uma cena do La maman et la putain poderia se fundir à uma outra do Beija-me, Idiota ou um gesto de Leaud parece refletir outro de Walston.


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