edição especial curtas brasileiros 2009
A song about killing your parents
por Eduardo Valente


Manassés, de Luisa Marques (Ceará/Rio de Janeiro, 2009)

Quase precisamente na metade de Manassés há um plano de uma mão que toca um coração que pulsa, numa cena roubada de alguma cirurgia cardíaca. A imagem deste verdadeiro “peito aberto” que se deixa encostar por uma outra pessoa é a que mais se aproxima do sentimento que temos ao ver o filme de Luisa Marques, um filme onde o termo “filmes em primeira pessoa” parece finalmente ganhar um sentido definitivo para além de termos uma câmera sendo manuseada pelo próprio realizador, uma narração em off ou um assunto que diga respeito à vida pessoal de quem faz o filme.

De fato, nada em Manassés indica que aquelas pessoas que surgem em cena são relacionadas com a diretora. É fato, aqueles que conhecem Luisa pessoalmente (como é o meu caso) a reconhecem na primeira sequência de imagens do filme, e podem a partir daí fazer todo tipo de suposições sobre os relacionamentos que surgem em cena. Mas saber disso não me parece que seja central ao “entendimento” do filme (especialmente se pensamos o termo para além dos sentidos relacionados tanto à racionalidade como em especial à questão de desenvolvimento de uma narrativa). Porque mesmo sabendo que aquela pessoa é Luisa, não há nada no filme que afirme com todas as letras que aquele ao seu lado é o pai dela, nem que a menina que surge mais adiante é uma irmã mais nova de uma outra relação. No entanto, tudo isso está no filme, para além de qualquer dúvida, como emoção, como operação cinematográfica de peito aberto.

Neste sentido, é curioso ver como a linguagem usada pelo filme para mostrar quão pessoal ele de fato é, é a da dissonância. Pois tão dissonantes como são os acordes de Sonic Youth e Smashing Pumpkins com as imagens de um já quase velho violeiro nordestino, numa sequência cheia de fusões de imagens, são também dissonantes os sentimentos que perpassam o filme todo, e que o fazem soar tão próximos de todos nós – e só por isso o percebemos tão próximo da sua instância realizadora (não por acaso os créditos finais, para além de listar as músicas, consta apenas de um “de Luisa Marques”). No filme, cada imagem caseira de um pai que toca seu violão ou de uma criança que brinca parece tão angustiante como a entrada de um objeto cirúrgico num corpo ou tão angustiada quanto um show de noise rock.

O motivo para este sentimento dissonante que perpassa o filme, pressentimos, advém do fato destas imagens caseiras não possuírem um só significado também para quem as colhe e coloca “em ordem” (expressão que parece particularmente inadequada para falar da montagem de Manassés, que é questão de tudo, menos de ordem). Isso fica especialmente claro em tudo que se refere à menina, cuja intimidade com a câmera indica um enorme carinho entre quem filma e quem é filmado, mas cuja maneira de ser colocada no filme a faz simultaneamente assumir o papel de espelho, de fantasma, de monstro quase – além de criança querida. No corpo daquela filha que não foi deixada de lado (e a única frase contextualizadora do filme fala num pai que vai embora), vemos a projeção de um desejo, de uma curiosidade, de uma inveja, de uma admiração de quem filma.

Que tudo isso seja sentido a partir de apenas um par de cenas, de uma série de planos, é o grande mistério e a grande beleza de Manassés. Um filme que fala muito sem dizer nada, e que usa dos elementos de um found cinema com uma simplicidade que só poderia mesmo esconder toda a complexidade de sentimentos que emanam da tela. E que podem ser todos resumidos naquele longo plano inicial, de um pai que toca seu violão na rede frente ao olhar de uma menina adulta que está sentada ao pé dele, numa relação de composição imagética extremamente precisa ao mesmo tempo que cheia de espontaneidade. Há um filme inteiro ali, naquela troca de olhares e sorrisos desconfiados, verdadeiros e melancólicos ao mesmo tempo. Mas que Luisa ouse não se ater à facilidade deste “pedaço de real” tão forte e denso, e monte a partir dele um discurso audiovisual tão contraditório e sem medo quanto Manassés, com todos os riscos (pessoais e artísticos) envolvidos neste ato, faz do filme um dos gestos de cinema mais potentes que vimos em algum tempo.

Março de 2010

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