in loco - semana dos realizadores
Mangue Negro, de Rodrigo Aragão (Brasil, 2008)
Tudo Isto Me Parece Um Sonho, de Geraldo Sarno
(Brasil, 2008)

por Fábio Andrade

A vida e a morte

Logo no começo das 2 horas e meia de Tudo Isto Me Parece Um Sonho, presenciamos uma conversa da equipe onde é decidido o rumo do filme. Fala-se em "pesquisa", "making of", "ficção", e sobre trazer para dentro do filme algo do "documentário contemporâneo". Existe, portanto, um encaminhamento sistemático para a incorporação da própria filmagem, que parte tanto de uma demanda de seu tema (a falta de imagens do General Abreu e Lima) quanto desse desejo de inseri-lo dentro de uma certa escritura que o filme identifica como contemporânea (a obra de Eduardo Coutinho, mas também Serras da Desordem, Santiago, Filmefobia, Sagrado Segredo, etc). O desejo pelo novo, porém, logo se revela de uma superficialidade atroz. Pois para além das aparências, Geraldo Sarno faz um filme de ímpeto muito semelhante aos que ele começou a realizar na década de 1960.

Ouvimos, em certo momento, uma conversa sobre a troca de funções da primeira e da segunda câmera; a primeira, de imagem oficial, passaria a registrar o making of, e a segunda faria o documentário mais convencional. A mudança é de resultados banais, e a necessidade de incluir sua explicação no filme é reveladora de como a aproximação com essa "nova cartilha" é tênue, desnecessária e acessória, pois não provoca nenhuma modificação real na intimidade do que é filmado. No fim das contas, Geraldo Sarno continua dando voz ao saber da academia para preencher as lacunas da história, conservando em aparelhos o sonho sessentista de descobrir um Brasil que já foi, há muito, descoberto. A diferença é que em vez de colocar o historiador sentado em uma cadeira, despejando informações diretamente pra câmera, Geraldo Sarno o acompanha em caminhadas, tentando aproximar esse registro de uma conversa. A diferença, portanto, é nenhuma.

Há, então, uma capa de novidade – tanto nessa suposta proposta metalinguística, quanto na câmera de Pedro Urano, com sua abordagem estilizada dos canaviais e sua "liberdade" de vez por outra abandonar o objeto principal da filmagem em busca de seu entorno – que nunca realmente produz nada a ser articulado, pois os interesses de Geraldo Sarno não superam o oficial. É especialmente ilustrativo que, perto do fim do filme, ele apareça dizendo que havia encontrado, enfim, uma "imagem do Brasil" que, até então, não conhecia. Ele fala sobre uma figura de culto do candomblé que vimos na sequência anterior, mas que, dentro do plano, não tinha a força que sentimos na fala do diretor. Tudo Isto Me Parece Um Sonho depende sempre desse discurso acessório, dessa explicação póstuma, pois dentro das imagens o filme se mostra incapaz de articular qualquer raciocínio vivo com um mínimo de clareza. Resta, apenas, alguma força nas imagens de ficção – único momento em que o filme parece realmente transformar com o olhar aquilo que vê.

* * *

É interessante que a curadoria da Semana dos Realizadores tenha confrontado o filme de Sarno a Mangue Negro, de Rodrigo Aragão. Pois esse já famoso longa de zumbis realizado em Guarapari faz um caminho absolutamente inverso, em suas intenções e em seus resultados, ao de Tudo Isto Me Parece Um Sonho. Se Geraldo Sarno incluía um estilo de filmar (o tal "documentário contemporâneo") para trazer uma capa de novidade para uma abordagem tradicional, aqui temos exatamente o contrário: todo o desejo de Mangue Negro é trabalhar a partir de uma linguagem absolutamente datada dentro de um gênero – que é, em si, a idéia de convenção.

Um dos vários pontos de força do filme é justamente a maneira como Aragão explora cada pequeno signo de uma linguagem estabelecida ao longo das décadas. Afinal, se o gênero se firma justamente na força de cada convenção, é francamente emocionante como o diretor busca, com alguns erros (o uso bastante ingênuo do fade, por exemplo) e diversos acertos, decodificar cada uma dessas unidades. Mangue Negro é movido por uma enorme sede cinéfila que quer, igualmente, descobrir como se arranca uma mandíbula de forma espetacular, e para quê serve o primeiro plano. Por essa curiosidade do olhar, acabamos com a impressão de que estamos vendo ambos – a mandíbula e o primeiro plano – novamente pela primeira vez.

Mas Mangue Negro oferece muito mais do que um abraço entusiasmado ao gênero. Existe, no filme, um prazer auto-suficiente de construção de personagens e de interpretação que é, por si só, digno de um texto à parte. Seja pelo artesanato da maquiagem, ou da voz e do gestual dos atores, o filme de Rodrigo Aragão é marcado por uma entrega notável a um certo imaginário caboclo capixaba, que raramente foi captado pelo cinema com tamanha integridade. Isso pode ser visto tanto nas personagens (e há ao menos uma, Dona Benedita, absolutamente inesquecível) quanto na maneira bastante frontal como o diretor trata temas de grande peso nesse imaginário, do misticismo ao incesto. Quantas "imagens do Brasil" seriam mais fortes, inéditas e autênticas que o mangue prateado pela noite, morto-vivo, infestado de zumbis?

* * *

Aí reside a distância que separa Mangue Negro de Tudo Isto Me Parece Um Sonho: enquanto Geraldo Sarno pensa as imagens de um país, Rodrigo Aragão as produz. Se Sarno traz textualmente Walter Benjamin e Bergson para conduzir certos raciocínios, Aragão nos faz pensar em Béla Balázs e no próprio Bergson (a fotogenia dos zumbis é muito mais ilustrativa da durée do que o exemplo de Sarno jamais será). São suas imagens que produzem tais reflexões, não o contrário. Diz Dona Benedita, em Mangue Negro, que às vezes é preciso morrer, para se voltar à vida deixando seus males para trás. Poucos se aventuram a tal risco, o que não faz dele menos necessário. O mesmo vale para o cinema e sua relação com a história: é sempre preciso estar disposto a morrer para tentar nascer novo. Mangue Negro corre o risco, vai e volta. Tudo Isto Me Parece Um Sonho finge enterrar um certo tipo de cinema, mas não percebe que faz justamente o contrário. É um morto com ares de vivo. É um filme zumbi.

Setembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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