in loco - especial É Tudo Verdade

Conversas no Maranhão, de Andrea Tonacci (Brasil, 1977-83)
por Julio Bezerra
(colaboração especial para a Cinética)


Por um novo olhar

Andrea Tonacci faz parte de um grupo de cineastas que encontrou um cinema já completamente codificado em suas formas canônicas e também modernas. Bang-Bang (1971), seu primeiro filme, era, como o próprio cineasta disse certa vez, uma “página em branco”. O cinema de Tonacci se alimenta deste interesse em esvaziar os moldes de feitura dos filmes – se baseia na busca, na utopia, na experimentação de um olhar não contaminado. Essa busca por um olhar renovado desemboca, ainda na década de 70, no contato com a cultura indígena. Apontar a câmera para o índio é, para Tonacci, a possibilidade de trabalhar um outro tipo de vivência e de propiciar ao espectador um engajamento mais humano.

Em 1977, o cineasta começa uma série de projetos sobre comunidades indígenas que se estenderá por diversos anos por países como os EUA, México, Peru, Bolívia e, naturalmente, Brasil. Filmado naquele ano, mas finalizado apenas em 1983, Conversas no Maranhão, o terceiro longa-metragem de Tonacci, gira em torno da duvidosa demarcação de terra que a Funai então preparava para os índios Timbira. O documentário foi realizado com a participação e orientação dos mais velhos do Conselho da aldeia, que aparecem em uma série de conversas intercaladas por imagens de rituais, gestos cotidianos e uma ou outra entrevista. Conversas no Maranhão revela o fascínio de Tonacci pela cultura indígena e aos poucos assume um aspecto de “carta filmada” ao Governo Federal, surge como uma forma da tribo poder expressar para as autoridades sua insatisfação com a demarcação de suas terras e com a negligência da Funai em relação aos seus interesses.

Conversas no Maranhão parece curiosamente sintetizar o cinema de Tonacci. Há neste documentário o olhar indígena como uma nova opção para o cinema, a construção em camadas, e uma relação lúdica com o espectador em que os signos são trabalhados e retrabalhados ao longo do filme. Conversas no Maranhão impressiona pela desenvoltura com a qual passa pelas mais variadas formas de registro. Trata-se de um documentário impuro no modo como narrativamente constrói suas representações, convivendo com uma série de modos de representação, em uma saudável promiscuidade.

Em um primeiro momento, Tonacci privilegia a observação e assume uma relação mais receptiva com os acontecimentos que se desenrolam e que envolvem o cineasta. A observação nos dá a sensação de como é estar em uma determinada situação, e neste registro o documentarista imprime uma enorme força ao filme ao dar uma idéia de duração real dos acontecimentos. A câmera suspira, acompanha os índios, evidencia um enorme carinho por eles. Estas seqüências de rituais e danças transpiram um fascínio mútuo entre as partes. A câmera se mostra apaixonada pelo que registra, enquanto os índios não cessam de seduzi-la. De repente, em uma belíssima cena que será retomada no final, o filme pára para ouvir um dos índios. Neste depoimento há uma preocupação com a linguagem corporal e o contato visual do personagem, com sua entonação e tom de voz. Percebe-se ali o desejo de filmar “a palavra em ato”. A força ou a veracidade do que diz o índio se encontra não somente no que está sendo dito, mas no próprio ato de contar, na forma como ele se expressa, no olhar, nos silêncios, no sotaque.

Estar presente permite observação, mas também exige participação. Tonacci aos poucos se afasta da meditação poética, desce do lugar onde pousou a mosquinha da parede e torna-se um ator social (quase) como qualquer outro. Podemos ver e ouvir o cineasta agir, fazer perguntas e reagir imediatamente, na mesma arena histórica em que estão os demais personagens do filme. Passamos a testemunhar o mundo histórico da maneira pela qual ele é representado por alguém que nele se engaja ativamente, e não por alguém que observa discretamente.

Tonacci sempre refletiu sobre o próprio processo de criação do cinema, inserindo uma reflexividade que dialoga diretamente com seus filmes como atos de construção de um discurso. A presença do cineasta assume então uma importância acentuada, desde o ato físico de “captar a imagem” até o ato político de unir forças com seus personagens. A observação, a participação na cena são rapidamente combinadas com a urgência da questão política, a demarcação das terras indígenas. O cineasta passa então o microfone para os índios, que decidem interromper o trabalho dos topógrafos e expressam sua insatisfação com os limites territoriais impostos pela Funai. Ao se abrir à participação criativa, à interação com os personagens, Conversas no Maranhão ganha um aspecto político e de militância. 

É importante destacar que Conversas no Maranhão não abusa, nem se esconde por trás desta fórmula de "dar voz ao outro". A voz do realizador não se confunde com o discurso do outro. Tonacci assume a posição de mediador e ressalta a relação desigual que se estabelece entre ele e os índios, já que estes, para serem compreendidos, não podem falar em sua língua nativa. É preciso atentar para o fato de que Tonacci não está interessado em um plano didático. Muito pelo contrário. Por vezes, temos a impressão de que o diálogo nunca se dá plenamente. Quando se fala na língua dos índios, não há legendas. O filme rejeita a simples tradução. A compreensão deve se dar de outras maneiras.

Talvez a questão epistemológica mais essencial ao campo da antropologia seja o de como o observador pode ou não escapar de suas determinações para alcançar o outro sem o submeter a critérios que não são os dele. Tonacci opera neste problema e aposta em um cinema que partilhe a criação e a realização dos filmes com aqueles que antes eram apenas objetos de pesquisa. Conversas no Maranhão busca modos de narrar que revelem a natureza dessa relação entre cineasta e personagens. É basicamente um filme sobre um encontro, tenta transformar a fórmula “eu falo sobre ele para nós” em “eu e ele falamos de nós para vocês”. Tonacci não pretende simplesmente falar do outro, mas do encontro com o outro.

Conversas no Maranhão é uma visão de dentro dos mecanismos de afirmação da identidade de uma nação indígena, um documentário que consegue combinar uma urgência política com uma certa abertura na linguagem. Tonacci retoma o plano do índio que fala diretamente para a câmera descrito parágrafos acima, e opta por um final em aberto. O fim do filme faz eco à convicção do diretor de que é impossível concluir, no sentido de dar um “fechamento” a um filme. O documentário é sempre uma redução da experiência.

Abril de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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