A Margem da Linha, de Gisella Callas (Brasil, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

Por uma arte franca

O ponto de partida é simples e, até por isso, potencialmente perigoso: discutir a arte contemporânea. O perigo seria compor um documentário introdutório, de um didatismo tacanho para explicar ao leigo o que são as artes plásticas contemporâneas e para dar notoriedade aos artistas para além das exposições e do restrito mundo da arte. A Margem da Linha pode ter a serventia de ser introdutório para quem não conhece o assunto, pode ter uma clareza didática (o que não é necessariamente negativo) e dar uma visibilidade maior a esse universo, mas o importante é que a diretora Gisella Callas não instrumentaliza o cinema como propaganda das artes plásticas e também não se obriga a fazer um diálogo formal entre o cinema e as artes plásticas, o que seria um tanto ingênuo, caso isso fosse uma busca por legitimidade estética, se levando em conta que é uma arte falando de outra.

O que se vê é um trabalho muito direto e franco na discussão que propõe sobre arte contemporânea. A diretora faz o possível para discutir as artes plásticas com honestidade e inteligência. Não pega três artistas e fala sobre eles, mas fala de arte a partir deles, em torno deles e para além deles. Os artistas que são personagens centrais no filme são Regina Silveira, Sergio Sister e José Spaniol. Eles falam de suas obras como processo, valores e conceito. Na verdade os três são a base para se propor uma discussão mais objetiva sobre arte contemporânea, uma discussão que se estende a críticos e outros artistas, curadores e até a um matemático e um físico budista. Estes últimos são presenças interessantes porque equilibram o assunto entre a lógica (o matemático) e a quebra do pensamento racional (o budista), que não tem na razão seu fim, mas também não vê que é preciso negá-la (lembremos que o budista também é físico). É nesse tipo de colisão e integração que a diretora estabelece as linhas de força do documentário. Vamos a elas.

Gisella Callas impõe uma ordem. Divide A Margem da Linha em capítulos que desdobram os temas acerca da natureza e das polêmicas sobre arte contemporânea, estipulados por intermédio da subdivisão de forma, matéria e conceito. Se o que se desenrola a partir disso pode ser bastante convencional para quem tem alguma familiaridade com as artes plásticas, já que é clara a preocupação em desfazer clichês sobre arte moderna, em desmontar falsas leituras sobre modalidades contemporâneas das artes plásticas, expor conquistas nesse campo (a partir das rupturas) e acirrar as opiniões dos entrevistados em torno de pontos polêmicos, a cineasta organiza o material de modo a fazer surgir entre opiniões diferentes, e até contrastantes, alguns pontos de inflexão sobre a arte contemporânea. Não é questão de saber quem está certo ou errado, mas de chegar em encruzilhadas, revelar impasses. É ai que percebe-se um trabalho que extrapola essa primeira impressão de filme introdutório para leigos e revela-se um filme sobre o irresoluto que algo concreto (a arte) estimula, a arte como algo mais complexo do que a percepção supõe. Essa, aliás, é uma boa definição que desmonta a aparente simplicidade de A Margem da Linha.

Novembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta