Margin Call - O Dia Antes do Fim (Margin Call),
de J.C. Chandor (EUA, 2011)

por Rafael Castanheira Parrode

Mercadores do horror

“Os eufóricos da cocaína do capitalismo financeiro nas alturas perdem todas as medidas: com a inesgotável cornucópia da máquina utópica de dinheiro, rejubilam eles, resolvem-se todos os problemas do futuro”.
Robert Kurz

Margin Call não poderia ser outra coisa senão um filme-catástrofe, fábula apocalíptica sobre o fim do mundo. A ameaça do fim aparece impressa em cada plano aéreo de Nova York coberta por nuvens cinzentas, na crescente tensão perpetrada ao longo do filme, no jogo sanguinário de relações que conduzem o mundo para o fim absoluto. Nesse sentido, Margin Call é também um filme de terror, assim como é por exemplo Terra dos Mortos, de George A. Romero. No filme de Romero, o personagem de Dennis Hopper olha, do alto de sua fortaleza inatingível, o embate entre humanos e zumbis enquanto planeja sua fuga de helicóptero, levando com ele uma mala cheia de dinheiro, antes que os mortos tomem conta da cidade. No filme do estreante J. C. Chandor, o poderoso vivido por Jeremy Irons, do alto de um dos maiores arranha-céus de Nova York, após entregar várias “cabeças” servidas em bandejas para saciar a fome dos leões do mercado financeiro para salvar sua fortuna, sai de cena num helicóptero enquanto um “banho de sangue” toma conta de todo o andar da empresa, provocando um abalo em todo o sistema.

Ainda que cada filme dê um destino diferente a seus personagens, ambos querem acima de tudo registrar um mal estar crescente dessa sociedade do lucro pelo lucro. Nesse sentido, ainda que Margin Call se inspire livremente na crise desencadeada em 2008 pelo banco Lehman Brothers, ele passa longe de um certo registro factual, buscando acima de tudo impetrar uma atmosfera, criar um clima de horror, em detrimento de qualquer didatismo que busque explicar os meandros dessa crise. Margin Call não é um filme sobre 2008, mas um filme sobre o hoje, sobre o agora - afinal, se a primeira faísca da crise ocorre em 2008, é agora em 2012 que vemos o colapso se instaurar diante do mundo, quando acompanhamos a crescente crise na União Européia, onde a Grécia é apenas a ponta do iceberg. É por isso que Margin Call permanece ainda mais assustador, uma vez que somos confrontados com a lógica de um mercado cuja ética e os valores nos levaram a um atual estado de coisas que reflete bem o que se tornou o capitalismo, e no que ele se tornará nos próximos anos.

Existe um jogo de relações orquestrado por Chandor que dá ao filme duas dimensões igualmente distintas e poderosas. A primeira é a de uma hierarquia, de um jogo de xadrez cujas peças são engolidas e destroçadas para satisfazerem o banquete do rei, e evitar que ele perca toda a sua fortuna. O filme abre e fecha com uma demissão em massa de funcionários, peões tombando enquanto outras peças se movimentam para garantir seu lugar no jogo. E é sobre esses movimentos de cada peça em busca do xeque-mate que se constrói a lógica do filme, algo que beira o medieval, com papéis e posições bastante definidas dentro do jogo. As menções a “servir a cabeça numa bandeja” e “banho de sangue” são inclusive proferidas em diálogos, quando Jeremy Irons quer se referir às conseqüências da manobra que irá tomar e dos personagens dos quais irá se valer para sair ileso da avalanche que tomará conta do mercado. Dos peões que irão tombar para que a música continue a tocar, sem interrupções. É a lógica do mercado de especulação, fictício.

Mas o filme não é sobre os peões. É sobre as torres, os cavalos, os bispos, a rainha e o rei. Nesse jogo desenhado por Chandor - algo que faz pensar em Altman, e suas complexas e irônicas teias de relações hierárquicas e sociais –, na maneira como as peças são dispostas no tabuleiro, nos confrontamos com uma idéia de que estamos todos à mercê de um pequeno grupo que controla todo o sistema, tomando decisões sobre o destino do mundo numa madrugada qualquer, dentro de um andar frio do mais alto arranha-céu. O que faz de Margin Call um filme perturbador é a maneira concisa como Chandor cria esse emaranhado de personagens de olhares vagos e melancólicos, espectros entorpecidos pelo dinheiro. Essa maneira sutil como se conduz esse jogo de olhares difusos que vão, aos poucos, nos revelando um fiapo do que poderia ser a história de cada um, nos confronta com a idéia de que esses homens que controlam o destino do sistema, espécie de deuses do dinheiro, são, sobretudo, demasiado humanos. Com exceção do personagem de Jeremy Irons, tão sedutor e inabalável, todos os outros parecem estar prestes a se quebrar. Daí ele tira interpretações inspiradas de seus atores, principalmente de Kevin Spacey e Demi Moore – posando linda e completamente destroçada para a câmera amparada ao fundo pela cidade de Nova York, distante, fria e complacente.

A segunda dimensão se constrói como um cassino onde se ganha e se perde com a mesma facilidade, onde a ilusão do dinheiro assume contornos megalomaníacos. É uma reflexão que se fortalece de um conceito do sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz sobre o “capitalismo de cassino”, que parece dar todo o tom do filme, definido basicamente pela idéia da especulação financeira, de empresas com um punhado de funcionários que capitalizam uma riqueza fabulosa em operações dúbias provocando um colapso no sistema produtor de mercadorias e gerando um crescimento ilusório, sustentado unicamente pela contínua ascensão do curso das ações tanto no centro especulativo dos Estados Unidos quanto no Sudeste Asiático, na Europa e na América Latina. Não é sobre outra coisa então a cena em que os personagens de Zachary Quinto e Penn Badgley questionam o personagem vivido por Paul Bettany sobre ele ter ganhado três milhões de dólares no último ano, e como ele gastou todo esse dinheiro nesse ano. O dinheiro é uma ilusão

J.C. Chandor aproveita a noite para criar tomadas noturnas impressionistas, num apuro visual que em certos momentos lembra o trabalho de Michael Mann de Colateral e Miami Vice. Esse breu apocalíptico filmado por Chandor cria todo um clima de instabilidade e mal estar que sublinha ainda mais o horror registrado pelo filme através de uma construção visual que amplifica o teor alegórico do filme. O prédio envidraçado, impressão de uma gigantesca bolha inflada, retoma a idéia de Robert Kurz sobre a derrocada final do capitalismo. “O capitalismo é uma bolha prestes a estourar”. Numa outra aproximação com o pensamento de Kurz, Chandor dá a devida atenção aos aparelhos tecnológicos como telefones celulares, lap-tops, computadores, pen-drives. É a revolução tecnológica e eletrônica que definirá o fim do capitalismo. Chandor quer, assim, fazer com Margin Call um estudo sociológico, metáfora corrosiva sobre o que Kurz chama de “colapso da modernização”. O resultado é um filme de horror sobre o horror, onde os zumbis caminham lentos, invisíveis em nossa direção rumo ao apocalipse.

Março de 2012

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