Maria
Antonieta (Marie Antoinette), de Sofia Coppola (EUA, 2006) por
Marcus Mello O
sabor do brioche As rainhas são, como as prostitutas,
personagens incontornáveis para o cinema, arte que freqüentemente tem a capacidade
de captar o espírito de sua época de modo bastante exato. A estréia quase simultânea
de A Rainha, de Stephen Frears, e Maria Antonieta, de Sofia Coppola,
é uma prova do apelo das cabeças coroadas junto ao público. Mas, muito além do
fascínio imediato exercido por estes dois ícones da realeza européia, o que se
destaca aqui é a sincronicidade dos olhares de ambos os diretores. Tanto Frears
quanto Sofia Coppola colocam suas soberanas no centro do palco – uma que testemunhou
o crepúsculo do século XVIII e outra que adentrou altiva o século XXI – para oferecer
ao espectador uma reflexão sobre a erosão das fronteiras entre as esferas pública
e privada no mundo contemporâneo. A ingênua adolescente
austríaca que vira personagem catalisadora da corte francesa é apresentada pela
diretora como uma celebridade avant la lettre, que desde sua noite de núpcias
precisará aprender a conviver com a devassa permanente de sua intimidade, tendo
cada um de seus passos acompanhados por uma horda indiscreta de súditos. Ainda
que este seja um insight original de Maria Antonieta, garantindo
ao filme um salutar sentido de oportunidade em tempos de hiper-exposição midiática
da privacidade, o que mais seduz no novo trabalho de Sofia Coppola é a apropriação
absolutamente pessoal da personagem levada a cabo pela diretora. Sofia segue interessada
em observar o movimento de mulheres confinadas, estejam elas enclausuradas numa
casa do subúrbio americano (Virgens Suicidas), num hotel em Tóquio (Encontros
e Desencontros) ou, agora, nos aposentos luxuriantes de Versalhes – sinalizando
a coerência de uma filmografia que, embora pequena, já se impõe como uma das mais
vigorosas do cinema contemporâneo. A
princípio deslocada em sua gaiola dourada, a jovem Maria Antonieta logo aceita
o jogo da corte de Versalhes, sucumbindo aos encantos da vida palaciana sem oferecer
resistência – e, mais, levando os exageros consumistas do Antigo Regime a níveis
nunca antes igualados, o que em pouco tempo lhe custará bem mais do que a impopularidade.
Ao abrir mão de sua herança austríaca, ela assume o papel que lhe é atribuído
e, amparada pela autoridade que o trono da França lhe confere, passa a encarnar
diferentes personagens, a fim de aplacar o tédio de uma vida de excessos (dama
mascarada em baile parisiense, camponesa no vilarejo que faz erguer nos arredores
de Versalhes, jogadora inveterada, amante de um nobre estrangeiro, cantora de
teatro). O grande acerto de Sofia Coppola foi fazer com que o olhar de sua protagonista
fosse compartilhado o tempo inteiro pelo espectador, a ponto de experimentarmos
a mesma vertigem diante daquele universo de luxo e esplendor. O que, antes de
ser uma atitude alienante, consegue demonstrar de forma quase “física” o caráter
embriagante e corruptor do poder. Outro ponto de interesse
no filme é sua aproximação pouco convencional frente a História. Ao dar à biografia
de Maria Antonieta um caráter de conto de fadas feérico, marcado por excessos
e imprecisões, a diretora atinge, paradoxalmente, um resultado muito mais convincente
do que aquele encontrado nos austeros dramas de época ingleses na tradição Merchant-Ivory
(tome-se como exemplo Jefferson em Paris, para ficarmos no mesmo período
histórico). Ora entregue a orgias gastronômicas regadas a champanhe, ora leitora
de Rousseau e mãe abnegada, a Maria Antonieta de Sofia Coppola é uma figura complexa,
que escapa a simplificações, especialmente de ordem política. O vai-e-vem da personagem
pelos jardins e corredores de seu palácio rococó (o mesmo pelo qual Delphine Seyrig
perambulou em O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais) é suficiente
para enunciar a impossibilidade de permanência daquele sistema. Retrato de um
mundo que rui quase alegremente, ao som de New Order, Gang of Four e Bow Wow Wow,
Maria Antonieta reencena a queda de Versalhes com o claro entendimento
de que a História não passa de uma sucessão de acontecimentos acionados por comportamentos
que insistem em se repetir. Representando
o cotidiano ritualístico e teatralizado da corte de Luís XVI com o mesmo colorido
vibrante de uma tela de Watteau, Maria Antonieta elege o décor como elemento embasador
de sua mise-en-scène. Sofia Coppola sabe que décor é espaço, categoria fundamental
no cinema, pois é o lugar em que o ator se movimenta, onde o plano encontra seus
limites. A seqüência em que Maria Antonieta lê a carta que lhe fora envida pela
mãe, cobrando-lhe a consumação de seu casamento, é exemplar nesse sentido. Acuada,
ela começa a deslizar lentamente, seu vestido confundindo-se com as estampas da
parede do quarto, como se estivesse sendo absorvida pelo próprio palácio. Ou a
cena em que ela está no banho, meio desfalecida, a lembrar o célebre quadro de
Jacques-Louis David com a figura de Marat morto na banheira (1793), imagem clássica
da Revolução Francesa (ao lado).
É com a inserção de planos tão finamente
elaborados, através dos quais anuncia de modo sutil o triste destino da última
rainha da França, que Sofia Coppola volta a confirmar sua fulgurante inteligência
cinematográfica. Eis um filme para quem sabe apreciar o sabor de um brioche.
editoria@revistacinetica.com.br
|