Maria
(Mary), de Abel Ferrara (EUA/Itália, 2005) por
Cléber Eduardo
A fé fora de questão Sagrado, para
Abel Ferrara em Maria, é acreditar. Não importa se em fatos comprováveis
pela historiografia, ou se em mistérios tomados como fatos pela teologia ou ainda
em ficções aglutinadoras da cultura popular em torno do invisível. Se existe um
alvo em seu enfoque, ele é o sensacionalismo lucrativo que explora a desacralização
do sagrado em best sellers (O Código Da Vinci), blockbusters
(A Paixão de Cristo) e na proliferação de evangelhos apócrifos, menos tratados
como material de pesquisa e mais como dossiês de denúncia contra falsas verdades.
E por isso é que minha pergunta diante do filme é sobre sua condição histórica:
esse mesmo filme seria possível nos anos 80 ou 90? Arrisco supor que, tal como
é, sem tirar nem pôr, de forma alguma. Maria só poderia ser um filme
de nosso tempo, do século 21, de 2006 – porque, se aborda questões teológicas
amplas e desvinculadas de épocas específicas, seu olhar é reativo à contemporaneidade.
Por meio do olhar questionador de Younger (Forest Whitaker), da palavra
demonstrativa de Marie (Juliete Binoche) e do espírito provocador de Childress
(Mathew Modine), Ferrara responde à indústria da especulação histórica, que, disfarçada
com o uniforme de “ciência”, estabelece verdades substitutas do mito, de modo
a se deslegitimar os ritos religiosos, com a intenção de se faturar moedas com
os atentados contra o sagrado de cada crença, não importa de que natureza da fé.
Ferrara constrói seu filme com a clara intenção de desligitimar a racionalização
da fé e do sagrado. Por isso, quando mostra reações verbais e agressivas ao filme
do cineasta Tony Childress, por conta de sua abordagem explosiva sobre a vida
do Cristo (abordagem essa que sempre ignoraremos), Maria, pela boca do
apresentador de TV Theodore Younger, legitima essas reações todas, ou pelo menos
as compreende, porque toda fé é indiscutível se for gerada e mantida por uma verdadeira
crença no sagrado. Lembremos aqui, portanto, do caso das charges ridicularizantes
com Maomé. Onde termina a liberdade de expressão da arte e começa a deslegitimação,
cheia de soberba, da fé alheia? Todo discurso não visa um poder sobre os outros?
Mas o próprio discurso, se construído com convicção em sua verdade, não carrega
sua fé? Sim, e Maria, nesses sentidos, é pantanoso. É
assim que, ao final, todos são legítimos – assim como todas as religiões e rituais.
Marie, porque realmente viveu um momento de iluminação e acredita estar em sintonia
com Jesus e Deus. Younger, porque entra em crise mística e existencial após o
contato com as imagens do filme de Childress e depois de viver uma experiência
traumática motivadora de sua redenção pela culpa assumida. E Childress, porque,
quebrando o estereótipo de artista-mercenário e cínico, atrás apenas de polêmica
e bilheteria, arrisca a sua vida em nome de sua arte, trancando-se na cabine de
projeção de um cinema evacuado por conta de uma ameaça de bomba, projetando o
filme apenas para seus olhos, como se estivesse atrás de uma iluminação pessoal,
mais até que de um espetáculo. A imagem nesse processo,
como já escreveu o colega Francis Vogner dos Reis, é fundamental. Ela está no
filme de Childress (início do filme de Ferrara), na revelação à Maria, depois
à Marie (por um pesadelo), depois a Younger, mais tarde à Childress, em sua epifania
diante de seu próprio filme. Mas não saberemos nunca, na imagem desse mesmo filme
(o de Childress), qual é o x da questão, a razão dos protestos, dos ataques de
segmentos diversos. Nem poderíamos saber. Porque parece ser contra a “imagem”
como verdade e revelação que Ferrara se insurge em seu filme para cultivar o enigma.
Fé carrega perguntas sem respostas, caso contrário passa a ser teologia ou ideologia.
E a imagem de Maria é sempre turva em seus sentidos, com livres associações
em seus fluxos, nunca óbvia em seu aparente esquematismo de montagem paralela.
Daí ser uma imagem estilizada, nunca realista, manipulada na luz, no foco, na
velocidade, consciente de que, diante da fé e do sagrado, como demonstra Godard
(como ator) em Nossa Música, apenas a imagem icônica (e não a imagem-verdade)
pode dar conta do mistério. Amém, Ferrara! editoria@revistacinetica.com.br
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