edição especial curtas brasileiros 2009/2010
Brincar de boneca
por Rodrigo de Oliveira

Matryoshka, de Salomão Santana (Ceará, 2009)

Depois que se passam todos os créditos finais de Matryoshka, surge um letreiro que explica não só o título do filme como também joga uma sombra sobre tudo o que já viramos até ali. Matryoshka era a boneca favorita de um escultor russo que as fabricava e vendia, e que ele decide guardar consigo, ao lado da cama. “Todas as noites antes de dormir, ele perguntava se ela estava feliz”, e só então o filme efetivamente acaba. No conto russo, como no filme, nunca saberemos a resposta da boneca. Mas, antes do produto, o processo: o que Salomão Santana faz aqui é exatamente um trabalho de escultura, co-dividido com Dayse Barreto, que dá corpo e voz à protagonista. É difícil imaginar uma pedra bruta que pede “naturalmente” ao escultor que tire dali a única forma possível, uma vez que é de construção ficcional pura, direcionada e programática, que o filme vive, opondo os planos estáticos de uma paisagem coberta de neve sob piano lamurioso à agitação barulhenta de uma noite de Fortaleza movida à gente na rua e música brega.

O registro de Matryoshka está longe de qualquer idéia de natureza, e ainda assim é nesse sentido que ele se encaminha, colocando-se quase como um duplo fílmico de uma torrente de emoções e lamentos da protagonista – como num diário que, miraculosamente, ganha vida em imagens sem interferências: é ela, sua voz, seu corpo, a língua russa e frases tão diretas quanto “eu me sinto uma baleia” ou platitudes adolescentes do tipo “me sinto uma estrangeira em minha própria casa”. E é claro que quanto mais o drama interior ressaltar a idéia do testemunho franco e natural, mais a sua artificialidade será exposta pela câmera e pela montagem (já passamos do momento histórico em que as esculturas eram consideradas representações do ele-mesmo de seus objetos – e, não por acaso, a escultura moderna posterior à desse fazedor de bonecas fabular insistiria justamente em deixar na matéria-prima a marca dos dedos de quem a produziu, manipulação em seu sentido literal: isto só existe por causa das mãos de alguém). E se Matryoshka não é ela-mesma, a menina nascida em Fortaleza, mas que nunca se adaptou à terra do sol e que, reativamente, surge russa e invernal, isso só poderia abrir espaço para que as marcas dos dedos de Salomão Santana estivessem mais evidentes.

A Curva, claro, vem à cabeça. No curta-metragem de 2007 (foto ao lado), o diretor pegava um punhado de registros caseiros do começo da utilização do VHS para separar deles justamente os momentos em que a presença desse objeto estranho na cena tão familiar de uma festa produzisse algum tipo de ruído de identificação – um pouco como na Chegada do Trem à Estação Ciotat, os olhares daqueles participantes de uma celebração em Juazeiro pareciam se perguntar de que ordem seriam os poderes da máquina que agora se punha diante deles. Não que a câmera não “fosse” como eles: eles é que, definitivamente, não eram como a câmera. Quando Matryoshka cria um prólogo nevado e opõe este cenário às reclamações da protagonista sobre o calor cearense, o que faz é mais do que colar-se a seu discurso. Um dos poderes da tal câmera é o de fazer existir, mesmo que imaginariamente, aquilo que nos parece impossível. Mas essa gentileza de oferecer uma fuga, a fuga pedida pela própria protagonista, não pode nunca esconder que nenhuma oferta é gratuita no cinema, e que algo será cobrado de volta.

A boneca ganha vida, mas seu espaço natural, como a boneca do conto russo, é transtornado pelo amor do fabricante. É aí que Matryoshka ganha seu contorno mais interessante, porque dá todas as demonstrações de um cinema de personagem, afetivo à toda prova, devotado única e exclusivamente às vontades daquele que retrata e que deve resguardar, para então impor, ele mesmo, uma agenda estética que se dá à revelia do objeto. “Não sei mais onde é o meu lugar”, e muito rápido Salomão Santana dirá que tampouco o filme é esse lugar (caso contrário, o filme seria narrado a partir do parquinho na neve, e não do inferno juvenil cearense).

A menina russa não é submetida ao mesmo constrangimento que os personagens de A Curva porque soube, desde o começo, ser produto de uma manipulação. Como na série famosa da fotógrafa Cindy Sherman, em que várias bonecas eram registradas aos pedaços, sem uma idéia de todo, cabeça e membros arrancados do corpo, Matryoshka nunca filmará sua protagonista por inteiro, querendo tirar dela apenas as partes – um rosto, uma mão fechada que espera sem sucesso o afago de um amor. Quando surge inteira, será sempre de costas, ou ainda, distorcida pela falta de foco da câmera, que a torna objeto indistinto no meio dos vários borrões da cidade. O inverno está lá, o piano se compraz, eventualmente até o “Masha’s Theme” que Henry Mancini compôs para Os Girassóis da Rússia aparece. Se a menina responderá à Salomão que está feliz com isto que coube a ela ser, objeto partido, solitário mesmo num meio que poderia revolucionar sua condição, isso nunca saberemos. Mas em Matryoshka ela, pelo menos, foi. E existir, encurralada que seja pelos desígnios de seu escultor, talvez ainda seja melhor que não existir.

Março de 2010

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