Medianeras - Buenos Aires na Era do Amor Virtual
(Medianeras), de Gustavo Taretto
(Argentina/Espanha/Alemanha, 2011)

por Andrea Ormond

Entre iguais

Você é um fracassado. Tem comportamento esquisito e suas tias falam mal de você nos almoços de domingo. Dizem, com a prosódia das tias, que você progressivamente enlouquece e se alheia do mundo, em uma espiral que se iniciou no fim da adolescência. Ou: você não casou, não tem marido. Tias reunidas, lembram que você gostava de brinquedos de menino aos sete anos de idade. Era muito apegada a uma amiguinha aos quinze. Uma das velhas senhoras, assim por descuido, solta a palavra “sapatão” e as outras parecem desconfortáveis. Mudam de assunto: afinal te amam, são católicas e não querem magoar ninguém.

Fosse nos anos 1980, até meados dos 90, os sujeitos em questão estariam condenados a responderem cartas de correio sentimental publicadas nos classificados de jornais, ouvirem Rádio Relógio até de madrugada, guardarem seus LPs da Julie London debaixo da penteadeira. E, last but not least, a continuarem parecendo marginalizados e solitários para todo o sempre. A trintona que não casava, o jovem suspirante demais, o obcecado por colecionismo eram pessoas-ilhas, estereótipos isolados e ocultos na vastidão do universo. Mas eis que veio o século XXI, chats, rede sociais, governo Lula, e esquisitões descobriram que suas manias não eram tão “suas” assim. Além disso, elas podem gerar uma espécie de pride, marca pessoal, identificação de bando. Nerds casam com nerds, geeks magrelos filmam suas relações sexuais, colocam no Pornotube e viva a diversidade. Embora haja um revés nessa tendência – afinal, quem só convive com iguais e se protege do diferente sofre bastante para crescer – a ideia de que existe uma cara metade e um grupo de amigos para todo mundo ficou mais real. E talvez isso venha tirando um bruto peso de consciências, antes aflitas por “defenderem uma certa anormalidade”, como no livro da psicanalista Joyce McDougall.

Medianeras - Buenos Aires Na Era do Amor Virtual, de Gustavo Taretto, enfia o pé na jaca do sentimentalismo, dos clichês e da pseudofofura para agradar montões dessas alminhas corroídas. É um filme de final feliz, e em filmes de final feliz devemos tentar descobrir a quê, ou a quem, paga-se esse tributo. Aqui a resposta é fácil: basta olhar ao redor, a platéia que o ama. Cinema de tribo, de situações pragmáticas, de ótica submetida a um estilo de vida. Os percalços são antes reafirmações de princípios do que propriamente dúvidas. A trama é adivinhada no primeiro minuto: mocinho e mocinha estão em Buenos Aires, especificamente no Barrio Norte, por acidente. Chelsea, Londres; Manhattan, Nova York; Assunção, Paraguai; tanto faz. Uni-los é questão de tempo. Entreter o espectador é demonstrar que sim, eles são um espelho de você, amigo, amiga, irmão de fé nas traquitanas alimentadoras de comportamentos esquizo-tecnológicos.

Se todo o resto é mais previsível que assassinato em novela do Gilberto Braga, a única surpresa reside na cena inicial, a do monólogo. Onde o leitor viu aquilo antes? Meninos, eu vi em Eros, o Deus do Amor (1981), obra-prima de Walter Hugo Khouri. Imagens dos edifícios e avenidas de São Paulo apoiando a voz e o vulto de Roberto Maya, em busca de uma explicação sobre si mesmo e a cidade. Trinta anos depois, ganhamos uma Buenos Aires depauperada, porém a voz é incrivelmente semelhante à do semideus khouriano. O desdobramento, exato oposto: Martín (Javier Drolas) representa um anti-Marcelo, seu hedonismo não contempla sequer masturbação. Ambos reclamam a solidão e o egoísmo em suas metrópoles. O que fazem com esse egoísmo é a excelência dos antípodas.

Esperando por Martín, Mariana (Pilar López de Ayala). Ela gosta de manequins de vitrines e de Onde está Wally?. Sofre de claustrofobia e outras doenças do espírito. Curioso como mulheres bonitas, elegantes e argentinas  podem comprometer uma história sobre derrota e redenção. Não só Mariana, também a deslumbrada que fala francês no encontro com Martín. Ele, um fraco, ruim de jogo, servil; suas parceiras, deliciosas e vertiginosas. Ainda que Mariana queira se jogar do precipício e beber água sanitária (na verdade, ela namora um manequim Bob), aquelas tias fofoqueiras diriam que “carrega muita areia para o caminhãozinho” de Martín. Talvez, em um show de tango, conhecesse o tradicional macho portenho da velha guarda, que lhe ensinaria todas as delícias do amor dominador e sexualmente incorreto.

Um terceiro elemento feminino, a passeadora de cães, vira rascunho de Mariana. Personagens se repetem, a resposta de Martín é que oscila. Com a mulher dos cachorros, seu desinteresse é pleno. A passeadora age como tia: “Você é gay?”, antes de ser possuída pelo ser amorfo, louco pra jogar Playstation. Nessa hora, em algum cinema da Tijuca ou do Shopping Aricanduva, a cafajestagem brasileira acende a luz vermelha: o problema de Martín reside na falta de pegada. Sua existência é do gênero passiva, não sobreviveria a nenhum terremoto, mesmo que melhorassem a arquitetura nos monoambientes, ou estancassem a desvalorização do peso. Mas o negócio é fingir que Martín é a tampa da panela de Mariana e pronto. Medianeras sobrevive dessa crença, desse dogma. Que existe felicidade e química entre castrados e frígidas. Talvez exista, quem somos nós para julgar? Amor em cada esquina, cada um na sua. Basta procurar pela Internet.

Janeiro de 2012

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