ensaios
Jonas Mekas e o Anthology Film Archives
por Lila Foster

A origem de arquivos de filmes invariavelmente se mistura à visão de certos indivíduos. Personalidades como Henri Langlois (Cinémathèque Française, Paris), Ernest Lindgren (National Film Archive, Londres), Paulo Emílio Salles Gomes (Cinemateca Brasileira, São Paulo), Iris Barry (Moma, Nova Iorque), Rolando Fustiñana (Cinemateca Argentina, Buenos Aires) praticamente criaram o conceito de preservação audiovisual e lutaram, cada um a sua maneira, pelo reconhecimento da salvaguarda como um dos aspectos fundamentais da vida de um filme. Como resultado do trabalho de figuras pioneiras, na história da preservação audiovisual existe uma ligação quase direta entre personalidades e perfis institucionais. O Anthology Film Archives, um arquivo dedicado a preservação e a difusão do cinema experimental e independente, não seria diferente.

Road to NowhereMas, no caso do Anthology Film Archives, o estatuto da personalidade tem uma dimensão um pouco maior. Jonas Mekas foi um agitador cultural que agregou em volta de si os personagens e os fluxos artísticos de sua época e não seria exagero dizer que ele personifica o cinema independente americano em todas as suas dimensões. Assim como o seu cinema era um prolongamento da sua vida, a sua vida não poderia ser pensada sem a sua atuação em todas essas esferas.  Mas mais marcante ainda na sua personalidade é que em todas as suas atividades Mekas criou e manteve “instituições”, muitas de longa vida e algumas delas em atividade até hoje. A lista impressiona: em 1955 cria, mantém e edita a revista Film Culture; em 1958, participa da fundação do New American Cinema Group; organiza a Film Makers’ Cooperative, em 1962, e quatro anos depois inicia as atividades da Film Makers’ Cinemateque.  Em 1970, funda o Anthology Film Archives com Jerome Hill, P. Adams Sitney, Stan Brakhage e Peter Kulbeka, projeto que acaba por condensar todas as suas atividades.

O percurso até a criação do arquivo é registrado em Walden: diaries, notes and sketches. Entre 1964 e 1968, Mekas se dividiria entre os seus diversos trabalhos e registraria os lugares e as pessoas envolvidas. Uma das primeiras imagens do filme é a fachada da Film-Makers’ Cinemateque em Nova Iorque: uma criança brinca dependurada na placa do que seria o embrião do Anthology Film Archives. A Film-Makers’ Cinemateque era o braço exibidor da Film-Makers’ Cooperative que, por sua vez, era o centro de distribuição do New American Cinema Group. Todas essas iniciativas surgiram da agitação da cena do cinema experimental nova iorquino e tentavam dar conta do “mercado” alternativo de cinema.  A idéia era fortalecer o cinema independente em todos os seus estágios: produção, distribuição e exibição.

Road to NowhereA Cooperativa funcionava através de um sistema de auto-gestão e uma das características mais marcante seria o de aceitar trabalhos de qualquer realizador que desejasse inscrevê-los no catálogo, nada poderia ser rejeitado. Sempre atento à importância da exibição Mekas, que já organizava projeções em pequenos cinemas em Nova Iorque, mantém os trabalhos da Cooperativa ao mesmo tempo em que dedica mais energia na organização de eventos em torno da cena underground.  Desta agitação e das reações violentas contra a exibição de Flaming Creatures (Jack Smith, 1963), primeiro causando revolta na Bélgica durante o Experimental Film Festival e depois acarretando a sua prisão na projeção em Nova Iorque, ele decide organizar a Film-Makers’ Cinemateque, um espaço de exibição dedicado totalmente ao cineasta experimental. Na sua carta de intenções:

"The Film-Makers’ Cinemateque was founded in the Fall of 1964 to serve the experimental, avant-garde film-maker. While other Cinemateques in other countries are mainly concerned with film history, with the past of cinema—the first concern of the Film Makers’ Cinemateque is the work of the independent film-maker today (…)

The non-commercial, avant-garde (also known, even if temporarily, as Underground) cinema has grown and developed immensely during the last five years. However, inside of pre-existing framework of film exhibition and film sponsorship there is little chance or no chance at all for the work of individual artists interested in a film as medium of personal expression comparable to other arts. The Film-Makers’ Cinemateque serves as a showcase and as a rallying ground for these artists".

Espaço de defesa e luta pelo cinema independente, entre 1964 e 1968, a Film-Makers’ Cinemateque muda de localização diversas vezes: City Hall Cinema, Lafayatte Street, Forty-First Street e 80 Wooster Street. Apesar da instabilidade e das dificuldades ainda conta com um esquema de organização e campanhas para arrecadação de dinheiro e doadores. Como programadores da Cinemateque estavam Jonas Mekas, Andrew Sarris (parceiro de Film Culture) e Ken Kelman. P. Adam Sitney, que seria o grande crítico do New American Cinema, participa como presidente da associação Film Culture.

Em 1968, passando por dificuldades, incluindo problemas financeiros e assédio policial, as atividades da Cinemateque se interrompem. Em Walden vemos Sitney mostrando os dedos depois de ter sido fichado por suas atividades junto à Cinemateque e Mekas se arrumando para mais um chá para arrecadação de fundos. Depois do fechamento, Mekas começa o projeto do que ele chamará de casa permanente para o cinema como expressão artística. O projeto do Anthology é gerido entre amigos e, com o aporte financeiro de Jerome Hill, no dia 01de Dezembro de 1970 é inaugurado o Anthology Film Archives.

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O mesmo grupo de amigos, cineastas, críticos e artistas que acompanharam Mekas nos outros projetos também fazem parte do Anthology. O plano principal do museu seria a formação de um acervo centrado na série intitulada “The Essential Cinema” com filmes que representassem a essência do cinema como forma artística. Um comitê escolheria um repertório de filmes essenciais a serem projetados em ciclos contínuos durante os anos e novas comissões ficariam responsáveis pela escolha de novos títulos fundamentais. Como um espaço pensado primordialmente para a exibição, Kubelka desenha os Invisible Cinema, um cinema com cadeiras protegidas nas laterais para garantir a máxima concentração do espectador. O critério curatorial está expresso no manifesto do Anthology:

"The cinemateques of the world generally collect and show multiple manifestations of film: as document, history, industry, mass communication. Anthology Film Archives is the first museum exclusively devoted to the film as an art. What are the essentials of cinema? The creation of Anthology Film Archives has been an ambitious attempt to provide answers to these questions; the first of which is physical—to construct a theater in which films can be seen under the best conditions; and the second critical—to define art of film in terms of selected works which indicate its essences and perimeters".

Road to NowhereFaziam parte da primeira comissão James Broughton, Ken Kelman, Peter Kubelka, Jonas Mekas, P.Adams Sitney e Brakhage, que abandona o grupo antes da escolha final por discordâncias. A lista dos filmes essenciais consistia de 330 títulos incluindo obras de Andy Warhol, Kenneth Anger, Brakhage, Robert Breer, Mekas e alguns clássicos de cineastas como Orson Welles, Murnau, Robert Bresson, Mélies e Lumière. A antologia de filmes escolhidos como “monumentos da arte cinematográfica” seria criticada por incluir muitos títulos dos cineastas do New American Cinema. Mas a seleção também demonstra o quanto o projeto e a visão de Mekas estão centrados no presente, nas questões e demandas da sua época e, porque não, do seu grupo, o cinema independente. Este é um aspecto que marcará a trajetória do arquivo.

Jerome Hill, grande patrocinador do projeto, falece em 1974. Dificuldades financeiras afetam a exibição dos ciclos como fora ambicionado e a mudança para um espaço menor prejudica a exibição adequada. Pensado primordialmente a partir da idéia de exibição contínua do “Essential Cinema”, aos poucos o Anthology se torna um espaço de exibição para novos artistas experimentais.  Nos anos seguintes Mekas começaria a programar vídeos, chamando Shigeko Kubota, artista ligada ao grupo Fluxus, para trabalhar como curadora. Como a sala de cinema tradicional é inadequada para a exibição de certos projetos, os espaços são adaptados para a projeção de vídeos instalações e projetos interativos. Com crescimento do acervo, em 1979 é adquirido o prédio de um antigo tribunal e as portas se fecham para a transferência que só acontece em 1985. Reaberto três anos depois, o novo prédio conta com duas salas de cinema, uma biblioteca, galerias e um departamento de preservação, sede que permanece a mesma até os dias de hoje.

A programação atual traduz exatamente o espírito de Jonas Mekas: filmes de novos realizadores e artistas “intermídia”, clássicos escolhidos por críticos, a série Essential Cinema e o especial Jonas Mekas selects: boring Masterpieces. Sempre aderindo a novos equipamentos, tecnologias e inovações, em 2008 o Anthology organizou a retrospectiva From Diaries to Downloads: New Video and Preserved Films from Jonas Mekas com o seu 365 Films, pequenos vídeos para cada dia do ano disponibilizados para download no seu site, e os seus filmes restaurados em película. O “arquivo” também realizou eventos com videogames Wii, disponibiliza através da UbuWeb uma seleção de textos da Film Culture e mantém uma página no Facebook.

Road to NowhereEm termos de preservação, com a ajuda do National Film Preservation Foundation e outras instituições de apoio, diversos títulos da coleção foram preservados e restaurados. Dezessete dos vinte e sete títulos que compuseram o DVD Treasures IV: American Avant-Garde Film, 1947-1986, editado pela National Film Preservation Foundation, foram preservados pela instituição. O acervo conta com mais de 25,000 títulos, uma das maiores coleções de filmes experimentais do mundo, e um extenso acervo documental sobre o cinema independente americano. Nos últimos anos editou publicações importantes como o importante livro sobre um dos maiores restauradores de filmes experimentais, Results You Can’t Refuse: Celebrating 30 Years of BB Optics, Bill Brand, Film Preservationist and Artist, e prepara atualmente o Biographical Encyclopedia of North American Avant-Garde Cinema, a ser lançado em 2013. Todo os anos é concedido o Anthology Film Archives Preseravation Honors que premia arquivista, cineastas, críticos, laboratórios, distribuidores e empresas que contribuem para a preservação audiovisual.

Em 2009, a instalação de Paul Sharits, Shutter Interface, quatro projetores 16mm projetando loops de imagens coloridas, foi lançado após a restauração realizada pelo arquivo. O vídeo diário de Mekas do dia 14 de Abril de 2010, disponível no seu site, traz imagens da instalação sendo projetada na Galeria Naftali em Nova Iorque. Um internauta comenta o vídeo: “o que você acha da nostalgia pelo projetor de filmes, você homem com a câmera digital?”. Jonas Mekas responde:  

"A instalação Shutter Interface na Galeria Naftali não tinha nada a ver com nostalgia: ela era real, aqui e agora. A peça, até onde eu sei, nunca fora realizada antes. Então essa foi a sua première. Agora, hoje. Nostalgia tem a ver com memórias do passado. Mas esse evento aconteceu aqui e agora, não tinha passado. Nostalgia virá daqui a vinte anos...se é que ela virá...
E, afinal, nós não vamos ver uma peça de Goya pela nostalgia dele ter pintado em uma tela: nós vamos ver um Goya porque sua arte é eternamente aqui e agora".

Este pé fincado no presente é o que destaca e diferencia o Anthology Film Archives de outras instituições de salvaguarda. O arquivo carrega inevitavelmente a marca da personalidade de Mekas: a constante agitação, uma vida cercada por amizades, a paixão por todas as facetas do cinema e respostas muito imediatas ao seu tempo. Em 2010, o Anthology completou 40 anos. A comemoração se deu em meio amigos e festas, com performances de Kenneth Anger e projeções com acompanhamento musical de Lou Reed e Sonic Youth. O dilema preservar ou difundir nem mesmo cabe para um arquivo nos moldes do Anthology. O cinema independente/experimental/avant-garde se preserva ali quase como uma entidade, sempre em transformação, mas sempre precisando de um espaço todo seu. Neste sentido, o Anthology realmente se tornou a casa do cinema experimental em todos os tempos.  O arquivo não congela o passado, ao contrário, ele o coloca em constante agitação: a preservação se guia pela a fruição que ela permitirá neste “eternamente aqui e agora”.

Setembro de 2011

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