in loco - cobertura dos festivais
Hotel Mekong (Mekong Hotel), de Apichatpong Weerasethakul (Tailândia/Reino Unido, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira

O ínfimo sobrevivente

O espectador que chegar a Hotel Mekong com as mesmas expectativas dos trabalhos que Apichatpong Weerasethakul assinara anteriormente corre o risco de se decepcionar. Não é porque haja uma ruptura com o universo que o diretor tailandês construíra nos demais filmes. Ele se mantém mas, por consideráveis motivos, em uma escala proporcionalmente menor. Hotel Mekong é uma repetição rarefeita de alguns recursos que o autor vem usando em seu cinema, uma versão pocket destilando, por exemplo, em poucas cenas o que era feito em uns milhares de anos (Síndromes e um Século), ao espaço restrito das poucas locações de um hotel, três personagens contracenando em uma curta duração e um orçamento inferior. Se, por um lado, algumas destas obras anteriores produzem um maravilhamento maior, aqui, nesta síntese por redução, tornam-se claros alguns dos mecanismos que fazem parte do estilo enigmático do autor, sem com isto deixar de encontrar sua beleza própria.

O projeto é, em primeira instância, um documentário para televisão sobre um fato político: as transformações na costa do Mekong, o maior rio da Ásia, que, por conta do desmatamento e da construção de hidroelétricas, transbordou e desalojou moradores de seus arredores. Mas o fato logo se torna uma ambientação para que Apichatpong Weerasethakul crie um registro ficcional íntimo, uma pequena história composta por pouquíssimas cenas em estado de rascunho, em sua maioria diálogos casuais entre um rapaz, uma moça e sua mãe (um espírito vampiresco que se alimenta de intestinos). A gravação do violão de Chai Bhatana dá início ao filme e se repete ciclicamente até o final, pontuando o tom plácido das típicas composições de quadro pouco simétricas, porém balanceadas, do autor. A dramaturgia em nada emotiva e a modulação nos ritmos temporais contribui para este estado de “rascunho” – de trama inacabada que pode tomar um rumo distinto a cada corte – e, ao mesmo tempo, de naturalismo pleno, de que tudo isto respira uma forma de harmonia rafaelesca entre o mundo e os seus seres, sejam quais forem eles.

O universo é imediatamente familiar, e voltamos a ver o diretor tailandês versar sobre o que talvez seja o seu tema por excelência: a concomitância de épocas e estados de existência. Colocar coisas, lugares ou momentos num mesmo fluxo espaço-temporal é criar uma comparação, uma via de investigação do que se transforma e do que fica, do que há em comum e do que há de diferente. Mas também uma sobrevivência política daquilo que passou, uma sobrevivência na forma de arte, memória, lenda e fantasmagoria que é tão real e natural quanto todo o resto à sua volta. O que resume tudo isto de forma mais clara em Hotel Mekong é bem provavelmente aquele que figura entre os melhores planos do ano: os jet skis sobre o rio Mekong, onde também passam canoas. O moderno não substitui o antigo, não desmoronou as tradições, apenas trocou suas ferramentas, e as duas habitam o mesmo espaço com naturalidade, com a simplicidade incrível que é estar no mundo.

Assim, Hotel Mekong dá continuidade a seu projeto de cinema numa recusa do sublime, das grandes paisagens e do sentimento de apequenamento e melancolia do homem diante delas (linha da qual Jia Zhang-ke é o maior representante contemporâneo), e uma adesão a um naturalismo que não é excludente, que planifica as coisas e as trata com a dignidade que merece tudo que é ínfimo e ridículo. Por este viés, Apichatpong Weerasethakul encontra o que há de humano (no macaco, no espírito, na máquina) pois é somente aí que as coisas podem ser ligadas a nós. Parafraseando a canção “Acrophobia”, que encerra seu longa-metragem anterior, Tio Boonme que Recorda suas Vidas Passadas, é como se “Joe” dissesse: “por favor, desça e me encontre, pois tenho medo de olhar para alguém muito acima de mim”.

Outubro de 2012

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