As Melhores Coisas do Mundo,
de Lais Bodanzky (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

O poder jovem

Um passeio pela adolescência pode dar início àquele processo nostálgico de comichões, de furores, àquela pedra encravada na memória, o ser tão distante que um dia fomos. Mais ainda, é possível o resgate do que não se testemunhou na própria pele. Afinal, pergunte-se a Platão, efebos existem há milhares e milhares de anos, gerações se sucedem. Não à toa, o “rito de passagem” é vitrine recorrente no cinema: traz consigo a galeria de hormônios que pululam e a ansiedade típica de quem vê a autonomia surgindo por detrás da esquina. Somando-se na equação o conceito de “poder ultrajovem” – emblema do século XX –, os exemplos brotam uns após os outros. Para se ficar apenas no cinema brasileiro, Verdes Anos (1983) dá a tônica da singeleza que se pode extrair deste nicho.

As Melhoras Coisas do Mundo inscreve-se em um meio-termo entre o que é e o que poderia ter sido. Longe de um filme lollipop, trata com requinte leve a ditadura do meio e a tentativa de se quebrar o círculo. Chega a ser cru o suficiente para demonstrar que, de início, até o protagonista (Hermano/Mano, Francisco Miguez) sentia-se feliz por nadar em uma zona de conforto. É flecha – quando rabisca um desenho contra a fanchona da classe e o prega no mural da escola –, mas se torna alvo – papai de Mano (Horácio, Zécarlos Machado) sai do armário, e eis que a casa cai. Há, portanto, ceticismo. A idéia de que a imbecilidade pode estar em todos, e que dar-se de cara com ela, tentar confrontá-la, é o diferencial humano, separador do joio e do trigo. Neste ponto, o filme cresce dramaticamente - fala a língua de gente grande e, surpresa, dialoga tanto com quem começa a compreendê-lo quanto com quem não o entende de fato.

Sim, porque superficialmente os sorrisinhos, as conversinhas, os bonitinhos e os feiosinhos estão todos lá. A roupagem teen é impactante, o traço que ambienta Mano, Carol (Gabriela Rocha), Pedro (Fiuk), Deco (Gabriel Illanes). Os desgarrados que transitam no meio disso – a blogueira de fofocas, a distímica bonitona, os maurícios –, e os adultos perdidos, que se pensam oniscientes sem sê-lo – Horácio e Camila (Denise Fraga), pais de Mano e Pedro. Sabemos que os instrumentos de controle se diversificam com o tempo, e os bedéis chatos são substituídos pelos confrontos entre os próprios alunos. Mensagens de sms, mães entupidas de Prozac, crescem narcísicos que só, autocentrados, confusos na ditadura do prazer.

Interessante notar que na linha do libelo de Mädchen in Uniform (1931) – realizado quando Hitler estava prestes a alucinar na sala de justiça – eram comuns produções em que o elemento adulto trazia peso imenso, a ponto de se unir ao totalitarismo. Em Mädchen..., por exemplo, uma única voz parecia se desgarrar do rebanho, encantando uma das alunas – e vindo daí a poesia da trama. Neste As Melhoras Coisas do Mundoos adultos não precisam ser os mesquinhos da vez: a carga está nos pupilos, coloridos, emos, fervilhantes, obtusos, descrentes, revoltados, na paisagem que povoa as salas de aulas atuais. Até mesmo o professor-galã e relativista (Artur, Caio Blat) – arquétipo à la Sidney Poitier – é objeto consumido. Caça, ao invés de algoz.

A atmosfera descontraída pode trair, para alguns, a substância do filme, mas tem seus méritos – por sinal construídos com auxílio de oficinas em escolas paulistanas, que deixam o dialeto fluir, sem travas. Não é neste setor do filme em que os deslizes acontecem. As escorregadas no resultado total residem, sobretudo, em um excesso de didatismo, como do professor de violão (Marcelo, Paulo Vilhena) que comete metáforas sobre o instrumento e a libertação, a ponto de sumir do mapa, “ir para o exterior, em busca de um sonho”. O fato é que o sonho já residia em Mano. Deu de cara com ele ao lidar com os pais – embriagados por uma pedagogia setentista –; ao socorrer o irmão suicida – beau depressivo, apaixonado –; ao ser verdadeiro com Carol na tensão óbvia de querer ficar com a menina e respeitar sua queda por Artur.

Entender este lirismo, este despertar, sem pistas fáceis e com alguma derrota maior, elevaria o filme. Mano e Carol separados funcionariam, uma suspeita de algo por vir. Mas a intenção parece ter sido dar essa colher de chá – e, francamente, mal não há nisto. No cômputo final, é nítida a empatia da diversidade dos públicos com a obra. Lá pelas tantas sorriem com as idas a hotéis baratos, riffs imaginários de guitarra, chapas de grêmio na escola, picardia embrulhada na coleção de situações que caem no colo do garoto de quinze anos. Bodanzky conseguiu diálogo e emprestou os olhos para tocar, ternamente, em elementos que se infiltram de maneira renovada no universo adolescente.

Maio de 2010

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