visita guiada Memória
do cinema brasiliense por Lila Foster
Numa casa na movimentada W3 Sul em Brasília fica a Fundação
Cinememória. Criada em 1994 por Vladimir Carvalho, depois de anos alimentando
o que ele mesmo descreveu como “mania de guardar”, tudo ali – fotos, revistas
antigas, cartazes, troféus, câmeras antigas, uma moviola – expressa a inseparabilidade
da trajetória pessoal do cineasta e a história do cinema em Brasília. Porque o
Cinememória não é um museu qualquer. Um misto de casa-museu-sala de cinema-biblioteca
mantida por recursos próprios, o espaço não desperta uma reverência a um passado
distante, muito pelo contrário. Espaço vivo (e ainda em construção, até porque
manias não passam assim tão facilmente), ele conta ainda com um guia perfeito:
o próprio cineasta, que a partir de cada objeto exposto ali te leva para momentos
de sua adolescência como leitor das revistas de cinema, períodos de filmagem,
lembranças de alunos e o trabalho na Universidade de Brasília, momentos do Festival,
visitas ilustres ao museu (a sua inauguração contou com a presença de Bertolucci)
e por aí afora. A entrada do Cinememória poderia se chamar
“Sala Colecionador”. Suas paredes estão cheias de cartazes de filmes como um original
de Deus e o Diabo na Terra do Sol, desenhado por Fernando Duarte (também
responsável pelo logotipo do Cinememória), Opinião Pública (no qual Vladimir
foi assistente de direção) e diversas gravuras, dentre elas a matriz em madeira
do cartaz de O país de São Saruê esculpido pelo seu autor. No seu centro
encontram-se vitrines que protegem antigas edições da Revista de Cinema (década
de 50), cartas de Paulo Emílio Salles Gomes quando na sua função de mantenedor
do Clube de Cinema de Brasília (que daria origem ao Festival de Cinema de Brasília)
e prêmios obtidos com seus primeiros curtas. Antes
de chegarmos à sala principal passamos por uma antiga moviola e pela Sala Paulo
Emílio Salles Gomes, uma mini-biblioteca com 3.000 exemplares sobre cinema brasileiro
e internacional, usado para consulta por pesquisadores e estudantes. Ao seu lado,
um pequeno santuário em homenagem a Heinz Forthman, documentarista que também
fez parte do grupo de docentes do curso de cinema da Universidade de Brasília,
com um antigo aparelho para montagem em 16mm. Todos esses aparelhos fazem lembrar
o quão artesanal era o cinema daquela época, ressaltando a figura do cineasta
como artesão, trabalhando a película como sua matéria-prima e explorador de espaços
ainda sem imagens, preservados e transportados para outros lugares pelo olhar
da câmera. E
é um fotograma ampliado dos primeiros cine-jornais captados durante a construção
de Brasília, ainda em 1957, que abre a sala principal, uma espécie de pedra fundamental
da história do cinema na capital – esboçada aqui pelas fotos e objetos que seguem:
o jovem professor Nelson Pereira dos Santos, a câmera usada por Dib Lufti em sala
de aula, as imagens da Universidade de Brasília contidas em Vestibular 70
(primeiro documentário dirigido por Vladimir Carvalho em Brasília em parceria
com Fernando Duarte), o primeiro troféu do cinema brasiliense por Vestibular
70, o “carrinho” improvisado com um tronco de madeira e um carrinho de construção
para a filmagem da Catedral, a turma de cinema comandada por Tizuka Yamasaki
(que, com o fim do curso em Brasília, seria transferida para a Universidade Federal
Fluminense – por exigência e engajamento dos mesmos junto a universidade). A
UnB é visivelmente o centro da vida cinematográfica na cidade e, de alguma forma,
o curso de cinema mantinha vivo uma parcela do projeto de universidade idealizado
por Darcy Ribeiro, interrompido pela ditadura militar (vide Barra 68).
Como registro dessa época vemos fotos dos professores Jean-Claude Bernadet, os
já citados Paulo Emílio e Heinz Forthman, e de cineastas como Rogério Sganzerla,
Glauber Rocha e Pierre Kast em conversas informais com os alunos. Dois objetos
nesta sala merecem atenção especial: são os restos da bolandeira filmada por Vladimir,
encontrados por Walter e Lula Carvalho durante a pesquisa para a filmagem de Abril
Despedaçado. Passando pelos primórdios do cinema brasiliense,
chegamos na “cozinha”, onde, além de mais cartazes, encontramos a Steenbeck usada
na montagem de Terra em Transe e Macunaíma, um Cristo em madeira
ainda sendo esculpido pelo cineasta-artesão e algumas edições de revistas da década
de 30 e 40 mostrando imagens do Bando de Lampião. Numa outra salinha, caixas e
caixas de fotos de clássicos do cinema, e no andar de cima a sala Visionário Dziga
Vertov usada como local de reunião para associação como a ABCV (Associação Brasiliense
de Cinema e Vídeo), APROCINE, projeções de filmes e encontros de cineastas. Neste
momento é quase inevitável pensar em como este museu e o seu criador fundam uma
vontade de história do cinema brasiliense que ainda está por ser escrita de forma
mais consistente, apesar dos vários trabalhos que já existem. Além disso, a necessidade
de preservação desta memória, que além de pessoal é também física, é latente e
se faz ouvir pela única “exigência” feita durante a visita: ressaltar neste texto
que o seu maior desejo é que o acervo do Cinememória possa ser doado para uma
instituição, para a sua salvaguarda em condições adequadas que permitam que a
história que está ali sendo narrada possa ser compartilhada e preservada. Essa
exigência não deixa de ecoar uma bandeira que vem sendo levantada por Vladimir
Carvalho durante anos, na sua militância como membro de associações e como crítico
de jornal: a necessidade de uma Cinemateca de Brasília. Brasília
conta somente com o Arquivo Público para depósito de materiais fílmicos – que
não dispõe de locais adequados para armazenamento. Uma Cinemateca na capital garantiria
o armazenamento dos filmes produzidos na região e funcionaria como importante
pólo de distribuição de filmes. É claro que tal estrutura só poderia ser garantida
como um forte comprometimento do Estado – resta saber o grau de interesse político
de criação e, principalmente, de manutenção do espaço. Em 2006, Oscar Niemeyer
concluiu a obra do Eixo Monumental com um complexo cultural ainda sem destino
certo. Quem sabe esta interrogação não possa suscitar um debate em torno da necessidade
e possibilidade de construção de uma Cinemateca Brasiliense. Enquanto
isso, Vladimir mantém sua dedicação ao Cinememória, este misto de história de
vida e história de uma cidade. Quem faz ou fez cinema em Brasília acaba passando
por Vladimir Carvalho, seja como aluno, parceiro de entidades, membro de equipes
ou como observador atento que é da movimentação em torno do cinema que acontece
em Brasília, cuidadosamente registrado em textos publicados no livro “Cinema Candango”,
editado pelo Selo Cinememória (ou seja, ele mesmo!). Para quem estiver ou passar
por Brasília: vale a pena uma autêntica visita guiada.
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