Memória
Para Uso Diário, de Beth Formaggini (Brasil, 2007) por
Rodrigo de Oliveira Arquivos,
como antes eram porões
Memória
Para Uso Diário, e o nome não podia ser melhor. Mais que um filme para forçar
o acesso emotivo a um passado coletivo submerso e dar voz a vítimas que se tornaram
heróis, este é um projeto lindamente pragmático em sua militância: entre as diversas
calhordices cometidas contra os revolucionários antiditadura militar e suas famílias,
a mais grave foi certamente o apagamento da dimensão visível de sua história,
e se há reparação possível, ela só pode se dar pelo “uso diário” do que sobrou
desta gente – sua imagem, seus nomes, os signos associados a eles. Em
algum momento do filme, vemos uma parente de um dos militantes assassinados pelo
regime falar sobre a perversidade embutida na invenção da expressão “desaparecido
político”. É contra esse apagamento que Beth Formaggini investe, e o faz pelo
desmascaramento, antes de tudo. A ditadura, como o cidadão brasileiro médio a
conheceu, era a das imagens icônicas e da propaganda nacionalista institucional,
largamente apresentada no prólogo do filme: não apenas os diversos cartazes e
slogans repetidos à exaustão pelo regime, mas também a ostentação da caça e prisão
dos vários “terroristas”, alardeadas nos jornais e na tevê como se aquele fosse
um ambiente de faroeste, um “procura-se vivo ou morto” onde o rosto de um perseguido
só tinha serventia até que ele fosse capturado – depois disso, o limbo, a morte
secreta e o desaparecimento. Uso
diário é a experiência cotidiana desta memória, a ação corriqueira que nem por
isso deixa de carregar todos os sentidos emocionais e políticos de que está preenchida.
Numa das seqüências mais impressionantes do filme (e impressionante justamente
por mostrar o caráter habitual da lembrança, e não o grande alarde profundo e
pomposo que projetos dessa natureza costumam ter) acompanhamos a visita de Romildo
a um cemitério no subúrbio carioca onde se suspeita que seu irmão tenha sido enterrado.
Com a ajuda de uma amiga e também ex-militante, o homem começa a listar, de cor
e com nome completo, dezenas de pessoas que faziam parte do mesmo aparelho de
guerrilha do morto, montando um quebra-cabeça de identidades perdidas que surgem
com a naturalidade de quem fala de amigos de infância. Romildo e a amiga não conheceram
a maior parte daquelas pessoas em vida, e a única ligação que mantém com elas
é a coincidência de terem participado junto com o irmão da luta armada. A memória
é superficial e posterior, como a nossa, espectatorial, mas diferente de nós (e
do filme), um nome dito é mais que a estampa de uma época, ele é o próprio reaparecimento,
a alcunha perversa se desfazendo em nome do presente destas pessoas, mesmo que
apenas oral e corriqueiro. É
assim, no limite de sua própria inviabilidade, que Memória Para Uso Diário
vai se equilibrando. Porque há algo na sobrevivência dessa lembrança que está
marcado por um irremediável senso de história íntima que nem todo o caráter coletivo
da luta revolucionária pôde superar. Quando Tânia Roque visita a escola que leva
o nome de seu marido morto pela polícia da ditadura, vemos uma celebração da figura
de Lincoln Bicalho Roque que é marcada pelo reconhecimento emocionado para a família,
enquanto nunca perde a sensação de valorização de uma ausência e de um vazio para
os pequenos alunos e suas professoras. As crianças carregam faixas com o nome
do militante, cantam enfileiradas o hino da escola, que exalta sua luta, fazem
perguntas no microfone sobre quem foi e o que fazia aquele homem, mas, no fundo,
nunca assumem estes discursos e essa celebração como sua propriamente. Ponto
de não-retorno definitivo é quando o filme leva um grupo de familiares dos desaparecidos
pelas ruas de um bairro carioca para buscar endereços e placas que homenageiem
ex-guerrilheiros (encontram no caminho, por exemplo, uma Praça Lamarca, ironicamente
abandonada ao capim pelo poder público). É quando a mãe de Marcos Nonato da Fonseca
encontra a rua com o nome do filho, mas, com uma placa enferrujada que impede
o reconhecimento do nome, recorre a alguns dos moradores curiosos do lugar para
que lhe dêem uma conta de luz que comprove a homenagem. Com a conta na mão, a
mulher se dirige à câmera e mostra orgulhosa o nome do filho, enquanto um abismo
se cria com o fundo do quadro, onde os moradores ainda não sabem direito do que
se trata aquele fuzuê todo, e talvez nunca venham a saber ou se interessar. Não
há chamado à memória e ao exercício da reparação que Beth Formaggini e o Grupo
Tortura Nunca Mais (financiadores institucionais do filme) possam fazer sem que
se esbarre neste abismo. A clandestinidade é a única marca da luta antiditadura
que resistiu ao tempo, porque essa memória também é clandestina e, independente
dos esforços de ambas as partes, ainda inviável. Em
Memória Para Uso Diário utiliza-se a estratégia do nome completo e do retrato
3x4 das vítimas, reforçados pelos letreiros finais que listam todos os ditos “desaparecidos
políticos” do país, e ainda assim esta é apenas uma personificação de segunda
ordem. É uma fissura da própria sociedade brasileira e sua incapacidade de lidar
efetivamente com o período militar que acaba se espalhando para o cinema, do qual
o filme de Formaggini acaba não deixando de ser um louvável retorno à regra. Não
houve julgamento dos torturadores, não se prenderam os responsáveis pelas mortes,
e as vítimas vão sendo indenizadas na surdina, em processos lentos e financeiramente
desproporcionais. Do mesmo modo, este cinema brasileiro que fala da ditadura nunca
conseguiu nem sequer levar a cabo a máxima godardiana de que as vítimas são sempre
filmadas de frente, enquanto os carrascos aparecem sempre de costas. Este
acordo tácito pelo esquecimento torna mesmo a filmagem das vítimas um problema
– e não só porque, como neste caso, o que resta delas é um retrato ou uma placa
de rua. Mais do que a forçosa relação entre os desaparecidos dos 60 e os desaparecidos
dos 2000, que o filme faz ao propagandear as ações do Grupo Tortura Nunca Mais
contra o abuso policial sobre jovens da periferia e das favelas cariocas, o que
Memória Para Uso Diário faz de realmente novo e instigante sobre esta relação
do país com seu passado é filmar não os personagens da tragédia, mas seu depositário.
Em poucos planos dos arquivos públicos nacionais onde uma viúva tenta buscar provas
de que seu marido foi morto pelo Estado e, portanto, merece uma pensão do governo,
vemos finalmente materializado todo o horror da desimportância que tanto a ONG
como o filme tentam combater. Confusos, sujos, improvisados, escuros, os arquivos
são o retrato mais fiel da falta de retrato: pastas e mais pastas com nome completo
e eventualmente fotos dos mortos e desaparecidos, sem que isso possa garantir
que as histórias guardadas ali possam um dia ser verdadeiramente ouvidas e revisitadas. Abril
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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