edição especial curtas brasileiros
2009 De frente, à frente por
João Toledo colaboração especial para a Cinética
O
Menino Japonês, de Caetano Gotardo (São Paulo, 2009)
De
toda a recente produção do curta brasileiro de que trata esta pauta, talvez o
filme mais sintomático seja O Menino Japonês, de Caetano Gotardo, o que
com mais força une diversas das questões centrais desse atual panorama. Um dos
elementos fundamentais do novo filme de Gotardo é a frontalidade com que observa
o universo retratado, essa invasão parcial de um universo através de uma janela,
uma observação do outro que no fundo se traduz em observação de si próprio.
Ao
que me parece, vários jovens realizadores, enquanto se desvencilham dos modelos
míticos e engessados do cinema nacional, encontram novos diálogos na medida em
que voltam seus olhares para si, para os espaços urbanos, para suas ambigüidades
específicas, sua solidão e todas as diversas questões que esse universo encerra
– e que refletem no cotidiano de cada um desses realizadores. Não se trata aqui
de empreender uma investigação que resulte em uma resposta sociologicamente precisa
acerca dos motivos que nos trouxeram a essa produção. A implicação sociológica
de conjecturas como estas incide na imprecisão que é comum a qualquer avaliação
subjetiva e parcial – e não me interessa mais que isso. De todo modo, a produção
não é dado subjetivo, ela existe e ela respira, pulsa, exige de nós um envolvimento
muito íntimo, muito pessoal, pois enfim o cinema brasileiro traduz com alguma
verdade a realidade que vivemos, enfim o cinema brasileiro fala de algum Brasil
que é possível reconhecer. A janela, um dos signos mais expressivos
da história do cinema, tem ganhado especial atenção nessa recente safra de curtas-metragens.
Em Phiro, por exemplo, Gregório Graziosi filma, no primeiro plano do curta,
a fachada da casa de seu bisavô, enquanto alguém abre a janela da frente; é o
ponto de entrada naquele universo tão próximo a ele. Passos no Silêncio,
de Guto Parente, também se inicia com um plano que observa uma sala de aula através
de duas janelas – em uma, a professora, em outra, o aluno, dois universos distintos
que se chocam. Osório, de Heloisa Passos e Tina Hardy, filma a garota sozinha
em seu apartamento, contemplando a janela, observando o mundo distante da praça,
dezenas de metros abaixo. Em Rosa e Benjamin, a imagem alterna entre o
interior da casa de um casal de idosos e opressor entorno, onde grandes edifícios
ocupam o espaço antes ocupado por casas. Em
todos esses filmes, a escolha relativa tanto ao que nos é mostrado de dentro para
fora quanto de fora para dentro dos espaços, compreende, a partir da frontalidade
com que se observa, uma dimensão da falta. A imagem abriga conscientemente a incompletude,
a impossibilidade operada por tudo o que escondem as paredes. A janela, afinal,
é sempre um recorte. Essa observação frontal – e quase inevitavelmente pautada
por um olhar que geometriza a paisagem em função do que nos oferece o espaço urbano
no rigor de seus recortes e obstruções –, ao mesmo tempo em procura o outro à
frente e descobre nele um reflexo de si, também se depara com o paradoxo urbano
do recolhimento individualista que, se por um lado nos afasta do mundo, também
nos representa perfeitamente por meio do que a janela permite ver. E vivemos nessa
fração. Nela, revelamos nossa imagem, nossa parcela de nudez. Nesse sentido, é
não apenas coerente mas fundamental que o próprio Gotardo seja o personagem de
seu filme – trata-se de um cinema, uma geração, um jovem que fala de si, e para
o qual se desnudar é condição necessária para uma expressão verdadeira. Em
O Menino Japonês, Gotardo dá prosseguimento a algumas das questões que
marcam Areia, seu curta anterior, como a impossibilidade afetiva, uma dimensão
fabular dos diálogos, uma imagem que concilia tempos distintos, conflito entre
a imagem concreta e a imaginada, a idéia de maleabilidade da memória, que pode
se desmanchar na areia ou desvendar o futuro, prever a solidão que não parece
condição, mas destino. Em O Menino Japonês não apenas o vídeo que o garoto
compartilha com seu amigo não está completo, não apenas é incompleta a ação que
observamos no apartamento vizinho. Tudo é incompleto – a relação com o menino
japonês é abortada pela pressa do rapaz, sequer podemos ouvir sua voz, também
nunca descobrimos se o rapaz do ônibus olhava para o teto buscando segurar o choro,
sequer sabemos se ele de fato existe, se é imaginação.
Os
dois jovens permanecem parados diante da janela, um olhando para o outro. Eles
trocam afetos como se trocassem (ou tocassem) solidões apenas. O fim do dia ainda
parece ser a hora triste, como em Areia, e a luz que se acende ao final
parece vir para desmanchar a dimensão do mistério, tirá-los do anonimato da sombra.
De observadores, passam a observados. Naquele momento eles também se tornam uma
janela a se observar, como as tantas do prédio vizinho. São visíveis, está claro,
mas intangíveis ainda. Jamais saberemos por que eles não se beijaram – como jamais
saberemos por que o vizinho encheu o copo, mas não bebeu sua água. Janeiro
de 2010
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