Meu Mundo em Perigo,
de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

Um (belo) filme em perigo

Em Meu Mundo em Perigo há um pai lutando contra a perda de seu filho, um filho vivendo o luto pela morte do pai em atropelamento, um e outro em tensão conjugal ou pós-casamento. Há ainda uma conexão entre os dois núcleos, justamente o atropelamento do pai de um dos personagens, o que pode remeter aos filmes de Iñarritu (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel). Há ainda a possibilidade efêmera de um encontro em meio à fuga, em um hotel com função de casulo, onde se escondem um dos personagens masculinos e uma jovem empenhada em se passar por muda (disposta a ouvir os testemunhos biográficos de anônimos, como se não tivesse nada a afirmar, a externalizar, e só precisasse ser habitada por outros), outras vidas e outros relatos.

Filme de rupturas e hematomas afetivos, de ressentimentos e impotências, com dois homens vulneráveis, que vivem em suas famílias experiências limítrofes, Meu Mundo em Perigo começa com uma citação de elogio à potência do ser humano em encontrar saídas transitórias e temporárias quando estão em um beco sem saída. No decorrer do filme, contudo, as saídas são estreitas. Para uns, não existe; para outros, é incógnita. Na filmografia de Belmonte (Subterrâneos e A Concepção), este terceiro longa mantém, em linhas gerais, um estilo e escolhas dramáticas. Estamos em mais um filme com personagens em colapso de compreensão de si mesmos e do mundo onde vivem, sem controle sobre seus passos e entornos, frágeis, perdidos, sem saber como agir. Mas o filme se diferencia porque, ao contrário dos anteriores, parece dar um ponto final mais evidente, encerrando os personagens centrais em uma prisão do destino. Também estamos em mais um fluxo belmontiano de muitos planos/cortes e de mobilidade de câmera: o diretor mantém-se em sua organização visual regida pelo acúmulo de imagens.

Determinados filmes são mais facilmente organizáveis em palavras. Raros são aqueles que, encerrada a sessão, abre o chão. Por um bom tempo (e é o caso), as experiências mostradas e a organização delas, nos mínimos detalhes e como sentido geral, precisam circular interiormente. Também há a impressão de que, em vez de ser um filme com problemas específicos, a problemática é mais ampla. A tragédia como código salienta o determinismo asfixiante dos personagens, que cumprem um destino ritualístico, explicitado pelo uso de música afro, assim como de candomblé. Há um projeto de transcendência, de sinais párea além deles.

Um rito. Não há muitos diretores, brasileiros ou não, com essa proposta. Belmonte trabalha a imagem, o que a antecede, o que já foi, o que está fora do campo, mostrando que, além do que nos dá a ver, também deixa elementos fora do plano, eventualmente relatados como palavras, com um ganho de tom confessional nesse filme com jeito de testemunho audiovisual. Há muito mais a dizer, mas não agora. Por enquanto, é o momento de respirar o filme, digeri-lo, emocionar-se retroativamente, deixando seu poder e impacto se manifestarem até o limite. A crítica não pode, em relação a alguns filmes que a desafiam para além da razão, mas não sem a razão, ter respostas prontas. Talvez seja necessário entrar em crise com os personagens, com seu autor e manifestar essa crise na relação com a obra. Só é preciso deixar claro que crises podem ser geradas por amor. E um amor não está desprovido de crises. Não é outra a condição desse crítico em relação a essa obra.

Se é o grande filme de Belmonte, aquele nos quais os personagens têm mais carne, mais sangue, mais cheiro e mais vida, ou se é “simplesmente” um grande filme e ponto final (com seu efeito de autenticidade jamais omitindo a indicialidade de intervenção do autor), ainda não se pode afirmar aqui – mas, certamente, supor com muita convicção ser essa uma enorme possibilidade. Se é seu filme mais complexo e problemático, sobretudo na relação do acúmulo em fluxo com o material humano, também não é algo a se afirmado agora. O que se pode antever, nesse processo de investigação interna, é a possibilidade, paradoxal, mas não contraditória, de a obra ser as duas coisas. A inviabilidade da uma bela imagem – um recostar de cabeça no ombro - se tornar um encontro do perdão (no caso entre um filho sem pai e um pai sem filho), é de grande potencial de choque. Personagens levados de lá para cá por uma instância superior (Deus, o destino, o autor), eles não têm a chance dessa conexão, porque estão “condenados” a cumprir uma sina. Por hora, só resta afirmar, com a emoção de quem revê o filme pelo próprio texto, que Meu Mundo em Perigo, por todas as características, é dos mais belos filmes do mundo. Em perigo, mas único. Terminar com “Senhor Cidadão”, de Tom Zé, é um abalo sísmico.

Novembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta