Millenium - Os Homens que Não Amavam as Mulheres
(The Girl with the Dragon Tattoo), de David Fincher
(EUA, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

Tensão latente, drama mortificado

Se o Zuckerberg de A Rede Social era um primeiro protótipo do gênio fincheriano, a Lisbeth de Millenium representa seu acabamento, em toda a frieza e impessoalidade associadas ao estilo do autor. Ela transita livremente por arquivos de segurança nacional, viola direitos de propriedade e decifra códigos secretos com muita naturalidade, transmuta sua aparência e identidade em questão de segundos, como se fosse um perfil de uma rede social, para conseguir acesso a um novo compêndio de informações; é uma enxadrista silenciosa, célere e objetiva até no ato sexual; anda de moto, mais rápido que um trem; é socialmente violenta porque é cotidianamente estuprada por burocratas. Sua inteligência não é criativa, inventora, ou sequer aquela do faro jornalístico, do hunch: é uma genialidade associativa – uma argúcia que opera juntando fotografias e matérias de jornais distintas, e encontra novas relações possíveis num conjunto de informações mediante uma pesquisa vasta e desrespeitosa. O como da ontologia fincheriana não cria ou decifra novas imagens. Antes, se insere num mundo altamente midiático, onde as imagens nascem a partir de informações cristalizadas por princípio, espalhadas numa teia extensa. Estão assim porque a história as fez assim. O cinema de Fincher é inteiramente baseado na noção de que a história da cultura desenvolveu um conjunto de ícones que devem se portar de certa maneira, e é a partir deles que o artista deve operar: um cinema de objetividade, sincretismo e, sobretudo, excessiva claridade.

Se pusermos lado a lado o prólogo das duas versões de Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, o original sueco e o filme de David Fincher, fica notável a forma pela qual este último desdramatiza a tensão do instante em que Henrik Vanger (Christopher Plummer/Sven-Bertil Taube) recebe, como presente de aniversário, o desenho de uma flor que faz remissão à sua sobrinha desaparecida. Na filme sueco, assiste-se por uma profusão de close-ups do estilete abrindo o pacote e da expressão de surpresa do empresário no momento exato em que se desenrola o drama. Fincher evita a emoção do motivo dramático a todo custo e, para tal, guia a cena por uma ligação de telefone. Contextualiza o ambiente com duas tomadas externas do vilarejo sueco, e adota o ponto-de-vista de um terceiro, ausente do drama, que recebe a chamada e ouve atentamente o ocorrido. Mais significativo ainda é um deslocamento temporal, que evita a tensão da descoberta de Vanger em direção a um momento de repouso. O drama já aconteceu; o pacote já foi aberto. Agora o que se narra é uma ligação que informa o acontecimento. Fincher desloca a ocorrência a um tempo póstumo, quando o drama já deixou de existir. Porém as causas que o originaram permanecem irresolutas. A tensão, latente, num estado de congelamento. Este deslocamento é, a seu modo, já uma carta de intenções do filme, tanto quanto da recente poética do Fincher.

Em seu texto sobre o filme, Ignatiy Vishnevetsky identificou em Millenium todas as obsessões da câmera de Fincher: abraçar uma cena por todos os seus detalhes descritivos, “catalogar” com uma frieza imponderável os objetos que descrevem os personagens e ambientes de seu retrato; fazer uma espécie de diário que “parece mais uma transcrição de vigilância do que um thriller”; um cinema que registra os fenômenos sem “instantes de revelação” ou “motivações”, mas que gera um compêndio de dados e fatos puros numa espécie de fenomenologia arquivista, anti-subjetivista, que mantém-se absolutamente no exterior, olhando as ações imperturbavelmente; uma montagem que prioriza a causalidade do “isto aconteceu, depois isto aconteceu” do que os momentos dramáticos da trama. Em suma, um cinema exponencialmente trágico (porque objetifica tudo, rumo a uma mortificação dos fenômenos) que reduz os acontecimentos a informações homogêneas, e que transita livremente por elas, sem o peso da culpa (desta mortificação) nas costas, criando uma grande teia.

A interpretação caminha rente à poética de Fincher, mas ignora justamente a serviço do que está este torvelinho de descrições estilísticas. Incorre no erro de interpretá-lo como uma tentativa de dar forma à vida mental do homem contemporâneo, diagnosticando com ironia sua afetação e suas mitologias, imprimindo um olhar sobre sua cultura, e usando ferramentas do mundo moderno como bode expiatório de um mal-estar generalizado. O tecido narrativo passaria a recriar a experiência de navegar na internet. Entende-se que, no interior deste esquema, a decupagem se torna um exercício de virtuose sofismática, um showroom de habilidades sobre um fundo de classicismo. A techné, por sua vez, seria esvaziada até se tornar habilidade sem espírito, indicando um triunfo pernicioso da ferramenta. Mas não se pode ignorar que este movimento de mortificação exige que, como no prólogo, a cena ocorra numa temporalidade posterior ao motivo dramático, quando a “descoberta” já esfriou e se tornou um dado, quando já podemos, através da palavra, afirmar: isto aconteceu. A sua frieza é parcialmente um resultado disto.

De fato, a fonte de inspiração da gênese imagética de Fincher não é a realidade ou a natureza imediata, pois ela é filtrada pela história da cultura: não cria formas a partir de sua interpretação de o que está à sua volta, mas a partir de uma iconologia que já esta desenvolvida e formatizada. Não se trata de reproduzir imagens a ipsis literis, mas de reproduzir conceitos. As imagens repetem um conceito, tal qual a flor que Harriet envia a seu tio anualmente: a imagem de cada flor é diferente da outra, mas expressa uma mesma ideia, um mesmo conceito, isto é, “uma flor”. A partir destes conceitos (uma flor, um cigarro, uma lata de Coca-Cola), Fincher formula suas imagens com uma univocidade incrível, ao ponto de se afirmar que, na concepção do diretor, há apenas uma maneira de se filmar uma cena. Afinal, a palavra é uma convenção da história da cultura, um conceito cristalino que expressa uma informação bem clara. Esta concepção de gênese da imagem a partir de conceitos cristalizados é a razão pela qual, por exemplo, os tipos hackers antissociais, no cinema de Fincher, sempre usam capuzes e sentam de lado nos escritórios – são gestos clichêsque deixam bem claro suas posições diante do mundo. É também a razão pela qual trabalha recursos clássicos (como por exemplo, o plano-contraplano ou a regra do eixo) de modo bastante burocrático, afinal, está a repetir um protocolo.

Se há um diagnóstico social implicito no discurso de Fincher, é um sobre a proliferação de imagens reproduzidas no interior de uma cultura, sobre o elo perdido entre a frieza da informação e o calor de seu drama. O diretor situa seus personagens (e a si mesmo) num mundo onde, a rigor, todos os fenômenos já estão dados, onde o drama virou estatística. A poética de Fincher ignora o acaso e o mistério. Ignora, ou na realidade, não sente necessidade de registrar da natureza um novo conteúdo, por que todo o conteúdo possível já teria sido registrado a partir dela no passado, e o autor não tem a menor intenção de retraçar o percurso rumo ao ponto originário da arte. A única operação que ainda resta para quem trabalha tendo como fonte as convenções e os tipos da história é proceder por associação, isto é, associando os objetos entre si para formular um discurso ou uma descrição. A frieza trágica e o convencionalismo com que esquematiza seu misè-en-scene vai ganhar sentido somente na montagem, no trabalho intelectual de associar as imagens umas às outras e, assim, criar sua retratística.

Com efeito, isto o leva a construir o espaço-tempo de forma totalmente antinaturalista. Põe o fundo fora-de-foco, iluminado sob um amarelo ou um azul difuso e homogêneo, de maneira a enfatizar somente o objeto central do quadro, a informação que ele carrega. O conceito é mais importante do que a inserção dele num espaço que o precede. Não há um espaço natural que anteceda estes objetos – na realidade, são eles que fazem com que o próprio espaço se formule. Ao mesmo tempo, ele salta entre estas informações como se a narrativa acessasse livremente um arquivo de tempo a tempo. No filme de Oplev, Vanger se utiliza de um projetor de película para mostrar as imagens do dia em que sua sobrinha desapareceu. Em sua transposição, Fincher não sente a menor necessidade de mostrar a projeção: salta diretamente às imagens do passado que, em vez de carregarem uma textura distinta, são caracterizadas somente por uma temperatura de cor jogada para o bege, um recurso deveras convencional para se mostrar imagens envelhecidas. As imagens são todas homogêneas, independente de suas datas, porque são todas informações frias, distendidas e protocolares, transformadas em conceitos verbais, cujo momento dramático de gênese/descoberta não nos está acessível.

Aos poucos, faz-se notável como a adaptação que Fincher realiza do livro de Stieg Larsson é no fundo um espelho metafórico de seu projeto recente. Com sua habitual misoginia, Fincher faz a narrativa perder todo o tom de engajamento contra a violência ao sexo feminino e horror ao nazismo entranhado nas macro-empresas capitalistas que o texto original trazia. O diretor norte-americano se aproveita da ontologia do gênero investigativo para criar uma reflexão sobre este apaziguamento do drama. Em primeiro lugar, trata-se de uma verdade do passado a ser desvendada. A investigação é engatilhada porque o “bom industrialista” ainda reconhece um mistério latente resguardado nos desenhos das flores que recebe repetidas vezes, ou seja, no interior da lógica da reprodutibilidade que nos remete naturalmente à própria indústria (e não é o som vicejante dos trilhos do trem o leitmotif sonoro de Millenium?). Em segundo lugar, o estuprador é classificado sobretudo como um sujeito “convencional”, mas que esconde no fundo desta normalidade uma violência absurda: é naturalmente um bom vendedor, e seduz facilmente com seus bons modos o jornalista para o covil – representa a faca de dois gumes que é a convenção e, consequentemente, o industrialismo. Em terceiro lugar, ninguém nunca consegue provar efetivamente a verdadeira culpa do outro sem ter de forjar provas. Estamos diante do paradoxo das provas jurídicas no mundo atual, e a inexorável necessidade de ação para se fazer justiça num tom em algo filtrado pelo faulknerianismo do Eastwood dos anos 90. Em quarto lugar, caminha em direção a esboçar a inteligência do modelo de gênio neste universo, que concebe novos ângulos possíveis a partir de um material congelado, aquele gênio associativo, a argúcia que encontra uma verdade singular fazendo quebra-cabeças, juntando em sequências fotografias do passado sobre as quais só podemos dizer “isto foi” (Roland Barthes), numa ordem que as dá movimento (numa sequência que faz clara analogia ao procedimento como um procedimento cinematográfico) e indica quem é o assassino, encontrando em meio a este material estático algo perdido no passado.

Mas mesmo imerso nesta lógica de perfeita mecanicidade, a motivação do gênio ainda é inteiramente apaixonada. Os dois únicos sorrisos que Lisbeth dá no filme, que Fincher tanto insiste em citar nas suas entrevistas, nos revelam uma espécie de nostalgia do amor perdido, do momento de plenitude afastado. A última sequência do filme repete o tema final de Rede Social: o ato do gênio busca remediar um exílio do mundo, criado por uma solidão um tanto patética que sente ao ver, a uma demarcada distância, o objeto sublime perdido. Uma perda, um chegar tarde demais, que entorpece, causa frieza e ressalvas, mas que ao mesmo tempo tem latente um calor irresolvível. O destino trágico do herói se situa não no esvaziamento de seu espírito, mas na dolorosa distância cada vez mais ampla entre ele e o seu amor; no mesmo lugar em que se situa a poética de Fincher: no intervalo incomensurável entre o calor do momento e a frieza de sua reprodução.

Março de 2012

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