Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Silvio Tendler (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Cinema da unanimidade

Existem filmes que nos provocam, inclusive negativamente, e filmes que nos adulam. O documentário Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Silvio Tendler, certamente pertence à segunda dessas possibilidades. O êxito de sua proposta foi evidenciado pelos aplausos durante sua sessão de estréia no Festival de Brasília: reações em rede que pareciam orquestradas, tão uniforme a adesão de grupos de espectadores, enredados com algum grau de consciência no efeito dominó. Porque aplaudir trechos de discursos de Milton Santos e José Saramago sobre os efeitos nocivos da globalização e sobre a falácia da democracia é uma forma de concordar com os ataques ao fluxo do capital na contemporaneidade e condenar a mercantilização da vida. Silvio Tendler nos dá a ouvir o que queremos escutar e nos dá a ver o que ele precisa demonstrar/ilustrar. Nenhum desafio, nenhuma crise. Apenas um congraçamento de filme e espectadores, uma celebração por se estar do lado certo da opinião pública, da qual o aplauso é a manifestação orgulhosa.

Enquanto se denuncia a fome e os efeitos da desigualdade, parte da platéia comemora, fazendo festa ao invés de expressar indignação, aderindo à retórica crítica de intelectuais bem articulados, que fazem um espetáculo de frases performáticas. Usando narradores para informar dados estatísticos sobre a fome e a distribuição do dinheiro no mundo, para contextualizar a globalização dentro de uma perspectiva histórica e para expor situações atuais de resistência ao capitalismo predatório, o documentário assume completamente sua disposição de ensinar algo a alguém, mesclando essa aula com as frases extraídas de contundentes análises de conjuntura de Milton Santos, intelectual negro de visibilidade internacional, que, sem ortodoxia, manteve até a morte seu vínculo com o marxismo como ferramenta de entendimento da História. As frases aplaudidas de Milton Santos são de uma militância lúcida, porém radical, que explicitam com todas as letras a tirania existente sob o manto sagrado da democracia. O público adora, porque concorda, e ai festeja. Milton Santos é a ponte com o público para Tendler. Não se trata de um documentário sobre ele, mas por meio dele e legitimado por sua voz.

Tendler se dispõe a realizar um diagnóstico de estrutura do capitalismo global, movido por uma tomada de partido contra os desequilíbrios de força entre os países no mundo, com proposta claramente multiculturalista, anti-nortecêntrica (Europa, Estados Unidos), que nos coloca em contato com um fluxo de imagens de manifestações de rua em vários países. Tendler deve ter visto os trabalhos mais recentes de Michael Moore, assim como viu The Corporation, talvez se apoiando mais nesse que naquele para atualizar sua linguagem. A narração dita o rumo das imagens em fluxo (fotos, cenas de outros filmes, arquivo), que eventualmente ilustram o depoimento dos entrevistados, procurando manter a narrativa em movimento, deslocando-se constantemente, com dinâmica similar a da circulação do dinheiro e o consequente deslocamento de pessoas.

Que importância tem essa iniciativa audiovisual para o documentário brasileiro em 2006? Como valor de linguagem, muito pouca, porque, embora utilize palavras de ordem contra a colonização cultural do Terceiro Mundo, com sua disponibilidade e disposição de imitar o Primeiro Mundo, Tendler faz o mesmo em relação às suas opções narrativas. Há uma permanente impressão de estar diante de um Michal Moore menos hábil e menos sensacionalista, que dilui a matriz para usar a grife da moda – mas a grife vendida no camelô do cinema, a imitação, empregada para se inserir na nova cara do documentário “instância do saber”, com seu denuncismo e seu diagnósticos embalados em uma linguagem reprodutora da produtividade do capitalismo atual. Filme para concordarmos, não para nos desafiar.


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