Missão Impossível 3
(M:I III),
de J.J. Abrams (EUA, 2006)
por Cléber Eduardo
Lutando pelas causas pessoais
O título e os antecedentes deixam as regras claras: entramos na
sala já sabendo que veremos movimentos intensos – dentro do enquadramento
e no encadeamento deles. Temos diante de nossos olhos um filme
de dublê, de montador e de diretor de segunda unidade, de ação
física, de ritmo dinâmico e de explosões, planejado como uma narrativa
sem muito descanso. Pela velocidade e pela confusão de sentidos,
duas metas são manifestadas: a primeira é demonstrar habilidade
técnica e o aparato tecnológico para viabilizar o inverossímil
(não sem parentesco com os números e truques do primeiro cinema,
como se toda a razão de ser do filme estivesse no exibicionismo
de suas capacidades); a segunda ambição é usar essa linguagem
veloz e espetacular para expressar algo do momento histórico no
qual o filme se situa.
Em outras palavras, Missão Impossível 3
nos apresenta uma dinâmica de espetáculo autocentrado, que se
alimenta do próprio espetáculo, como um game ou um parque
de diversões. Mas faz isso construindo um mundo na tela, que,
bem ou mal, leva em conta o mundo fora dela. Esse mundo é o da
alta espionagem política, que, desde a primeira parte da franquia
(baseada na série de TV), reflete na trama intrincada, e nem sempre
compreensível, o estado de confusão pós-queda dos regimes comunistas.
O perigo agora está em qualquer lugar – em geral, está ao lado;
e não se age mais em nome de Estados ou de ideologias, mas por
dinheiro. O herói americano não consegue mais se situar – aparências
e informações pouco valem em seu percurso.
Logo no início, Ethan (Tom Cruise) é torturado,
sem saber onde está a tal “pata de coelho” procurada pelo torturador,
um traficante de armas. Vemos, segundos depois, sua esposa também
amarrada, em vias de levar balaço nos miolos, também ignorante
em relação ao motivo de sua provável morte. Conseguirá o herói
salvar sua pequena? Com essa lógica narrativa dos primeiros filmes
de perseguição-salvamento (ainda no século XIX), depois retomada
pelas séries exibidas nas matinês dos cines poeiras, o MI 3
reconstitui o percurso de Ethan até ali, desde sua suspirante
e sorridente festa de noivado.
Nenhuma surpresa nos aguarda. Sabemos desde sempre
como tudo acabará, pois o herói é capaz de tudo em meio aos sentidos
movediços de sua trajetória. Isso não significa que Ethan está
podendo mais. Pelo contrário: dentro do percurso da série, MI3,
do ponto de vista estilístico, domestica MI2, de John Woo
– no qual a imagem tinha sua natureza e duração esculpida de modo
a artificializar o excesso de espetáculo com ressonâncias reflexivas,
já que, talvez até mais que o efeito resultante das opções, o
mais evidente é o próprio artifício. Woo basicamente refaz seus
filmes de Hong Kong com a engenharia de produção de Hollywood,
mas mantendo na concepção visual e no caráter mitificante de algumas
situações o senso de poesia e de atmosfera lúdica de seus filmes
anteriores a O Alvo. Nesse sentido, com todas as situações
inusitadas, MI3 é mais sóbrio.
Também é mais cético na relação do herói com a
agência secreta de seu país. Se o primeiro filme da franquia atualiza
a série com a crise instalada pelo vale tudo de um mundo pautado
apenas pelo dinheiro, e coloca uma fissura no papel do espião
nesse novo panorama geopolítico, temos agora um divórcio mais
gritante entre as razões do espião semi-aposentado e de seus patrões
do Estado. No final de Missão Impossível, de Brian De Palma,
Ethan se encaminha para a missão seguinte, ainda obediente à sua
empresa clandestina. Na continuação, de Woo, ele sai de férias,
mas preparado para a próxima aventura. De qualquer forma, enquanto
tenta salvar o mundo de um vírus letal leiloado por um ex-agente,
Ethan arrisca-se, sobretudo, para impedir a morte de uma ladra
por quem se apaixona. A motivação pessoal está acentuada.
Em
MI3, ela é quase a única razão do herói sair de sua tranquilidade.
Ele se põe em risco por uma pupila a quem treinou e pela esposa
com quem acabou de casar. Age pelas mulheres, não pela Casa Branca.
A casa que importa, agora, é a dele mesmo. Está mais confuso o
mundo dessa vez: informações nos são vetadas, entre as quais o
que vem a ser a tal pata de coelho. Para descobri-la e tê-la em
mãos, Ethan corre de país em país, voa de um prédio para outro,
passa sebo nas canelas e torna-se o faz-tudo a todo instante,
mas sem nunca saber o que está por trás dos acontecimentos. Age
sem consciência; é pura ação. E age apenas por questões pessoais
– primeiro por uma ex-aluna, depois pela esposa, jamais por seu
governo ou por suas convicções.
Nesse universo no qual sempre a imagem mais esconde
a verdade que a revela aos olhos do herói (característica especialmente
marcante no capítulo de Woo, no qual há um duplo de Ethan que
assume seu lugar eventualmente), sua preocupação maior é fixar-se
no lar e trocar alianças para ter uma referência fixa em um mundo
de identidades móveis. Nesse ambiente de desconfianças, a declaração
de amor à esposa é feita com lágrimas nos olhos, porque o amor,
nesse cenário, tem de ser viabilizado com a manutenção de alguns
segredos (a profissão dele). O desfecho com sinais de amizade
e de estabilidade temporária, sem a adrenalina da profissão de
agente secreto, explicita a distenção entre o desejo do herói
e sua tarefa no mundo de hoje. É hora de cuidar da casa e abrir
mão do país.
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