in loco - cobertura do Festival do Rio

A imagem e os mistérios
por Eduardo Valente

Jonestown: Vida e Morte no Templo do Povo (Jonestown: Life and Death of People’s Temple), de Stanley Nelson (EUA, 2006) – Dox
Sexta-feira ou um dia qualquer (Vendredi ou un autre jour), de Yvan Le Moine (Bélgica/França, 2005) – Panorama

Um dos mais fascinantes aspectos dos festivais de cinema são as livres associações absolutamente aleatórias que o nosso trajeto pessoal pela programação acaba nos forçando a fazer. Neste sábado, por exemplo, dois filmes se superpuseram na minha atenção apesar de suas origens em nada remeterem a alguma semelhança específica.

Jonestown é um documentário americano que me chamou a atenção antes de tudo pelo tema: aquele que é considerado o maior “suicídio coletivo” da história humana, quando quase 900 pessoas morreram na Guiana, dentro da comunidade Peoples’ Temple, liderada pelo pastor Jim Jones. Jones sempre foi, para mim, um destes mitos sobre os quais eu não possuía nenhuma informação, somente “impressões” (a maior parte delas vindouras do personagem de Chico Anysio, o Tim Tones). Para mim, tão somente mais um pregador picareta que havia terminado em tragédia. Confesso, portanto, que o que me fez programar este filme não era praticamente nenhum interesse cinematográfico, e sim histórico-factual mesmo. Eu nem poderia imaginar que justamente desta dicotomia (construção narrativa audiovisual vs. realidade) é que viria o maior interesse do filme.

“Filme”, no caso, é um termo usado por simples associação com a idéia que temos ao irmos a uma sala de cinema assistir algo num festival. Porque, de fato, Jonestown é um grande programa de TV jornalístico projetado em vídeo – ou seja, a única diferença entre vê-lo no Festival do que vemos em casa nos GNT da vida foi o tamanho da tela. Mas, curiosamente, é deste equívoco de conceito sobre o que é exatamente este trabalho que advém seu maior interesse, porque o jornalismo “investigativo” americano se baseia numa premissa, em si típica do espírito do país: a de que tudo pode ser explicado se fizermos o nosso “dever de casa” (do your homework). Ou seja: se o jornalista entrevistar todas as partes envolvidas, fizer uma pesquisa histórica e iconográfica profunda, e mantiver um mínimo de isenção, teremos um fiel retrato que nos permita compreender “o que se passou”.

Por isso, este é o approach escolhido por Stanley Nelson para dar conta da vida do pastor Jim Jones e sua comunidade: entrevistas com amigos de infância, com os sobreviventes das Guianas, pesquisa de imagens (e sons – curiosamente estes mais numerosos e marcantes), contextualização histórica. E assim o filme vai evoluindo, como se cada parte do caleidoscópio fosse sendo construída e “explicada”. No entanto, nada se explica de fato – e não por alguma falha na “pesquisa’, no homework, e sim pelo simples fato de que tudo na história escapa às possibilidades da explicação. A figura de Jim Jones, sua influência nas pessoas, sua presença no momento histórico em que surge, a relação da sociedade americana (e do Governo, por que não?) com o que se configurava como uma célula socialista em um país que lutava contra o comunismo nos confins do mundo, até o ápice do inexplicável, que é o episódio de Jonestown.

Quanto a este, o filme tenta se escorar nos testemunhos dos sobreviventes (na maioria, compreensivelmente traumatizados e revoltados, pois perderam vários familiares), mas todo o resto (os sons gravados no dia, a carta de uma suicida, a fala de uma mulher que diz ter encontrado lá o Paraíso) parece gritar que nada pode explicar o que aconteceu ali. A ausência estruturante do filme é óbvia: os motivos de Jones e de todos os que morreram naquele dia foram enterrados junto com eles. Sua morte possui mensagem clara (como aparentemente eles mesmos desejavam)? Claro que não – nem ela, nem as falas dos que sobreviveram. Ao espectador, resta perceber a impossibilidade do mais “caxias” dos jornalistas em dar conta de uma realidade que escapa pelas mãos a cada imagem, a cada som – esfinges insondáveis que desafiam, aparentemente sem que o realizador se dê conta, a incapacidade de sua obra perante o objeto. Curioso caso de filme que pede para ser visto, mais pela crise de seu dispositivo, do que por suas qualidades.

Já o francês Sexta-Feira ou um Dia Qualquer encontra-se no exato oposto do espectro cinematográfico de Jonestown: menos pelo motivo mais óbvio (ser um filme de ficção), e muito mais pelo fato de que baseia todo o poder de sua narrativa nesta mesma característica misteriosa das imagens cinematográficas ante o mistério humano. Baseado num romance que é, ele mesmo, uma adaptação da história de Robinson Crusoe, o filme se passa quase completamente numa isolada ilha do Pacífico, onde, após um naufrágio, só sobrevive o ator da Comedie Française Philippe de Nohan (brincadeira clara com o nome do protagonista do filme, Philippe Nahon – cuja presença física e voz over constante nos lembram o filme de Gaspar Noé, Sozinho contra Todos, ainda que os filmes sejam quase opostoso completos). Mais do que as questões de sua sobrevivência (que o filme soluciona discreta, mas eficazmente), o que se coloca aqui é a questão da possibilidade e dos limites da sanidade na existência do ser humano fora da sociedade, fora do mundo, por assim dizer. Nesta relação do homem civilizado com a natureza (e depois com o selvagem), impossível não ver ecos do contemporâneo Novo Mundo, de Terence Malick.

A maior qualidade do filme de Yvan Le Moine é justamente equilibrar sua narrativa entre a construção esteticamente deslumbrante (mas nunca vazia neste deslumbre) da realidade de seu personagem (realidade aqui entendida como algo que incorpora o imaginário e a lembrança, e onde o tempo passado é incrivelmente relativo), com uma estrutura narrativa que não resvala no recurso fácil do imobilismo. Acompanhamos, assim, um percurso “lógico” do personagem (de novo, lógica aqui entendida de maneira nada linear), sem que no entanto o filme precise para isso tornar sua odisséia algo simplificado (e lembramos aqui de Náufrago, de Robert Zemeckis, de estrutura a princípio semelhante, mas dispositivo praticamente oposto – “americano”, se pegarmos a definição usada acima). Cada passo na trajetória de Nohan (suas desistências, o desejo da morte, a aparição de Tenn, depois de Sexta-Feira, a relação com este, a chegada – inevitável – do “resgate”) é fascinante, permitindo que o filme evolua com leveza sem se sufocado nem por um excesso de narração, nem de contemplação – desafio nada desprezível para o filme, que dá conta assim de filmar uma outra face do mistério insondável do estar no mundo, para um homem.


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