ensaios Entre
o talento, o acaso e a tragédia por Cléber
Eduardo Qual
a importância de Antônia, de Tata Amaral, no cinema brasileiro contemporâneo?
Embora dê continuidade a um processo de aproximação com os espaços sociais depauperados
e com as experiências decorrentes dessas condições adversas, tendo como um dos
pólos energéticos a credibilidade naturalista de seu elenco de não-profissionais
(preparados por Sergio Penna), não está exatamente nessa imitação documental-indicial
de realidade o diferencial do filme no panorama atual. O diferencial de Antônia,
sem ser uma novidade, está no enfoque. Seu olhar para personagens localizados
na “linha da pobreza material”, sintomas do “efeito-Brasil” no século 21, não
mais salienta o imobilismo desse universo, contrapondo-se a olhares de um momento
imediatamente anterior (que não se sabe se já estão arquivados). Com outro discurso,
de mobilidade social permitida apenas para uns poucos (os talentosos ou escolhidos),
esbarra, de maneira ainda mais afirmativa e sem ambiguidades éticas, na ascensão
vista em Cidade de Deus e O Invasor, mais próxima em Dois Filhos
de Francisco, com o qual mantém laços bem mais estreitos.
A
contraposição se dá com o primeiro longa de Tata Amaral, Um Céu de Estrelas,
no qual a manicure Dalva tinha seu projeto abortado ao lidar, durante o impedimento
de partir para Miami, com a morte da mãe e o assassinato do ex-namorado, antes
de terminar encaminhada para o camburão. A mobilidade do pobre, conseguida com
perseverança e habilidade (ganhando um concurso profissional), termina em banho
de sangue. Ainda na segunda metade dos 90 (mesmo momento de Um Céu de Estrelas),
vimos o músico Orfeu no filme de Carlos Diegues, cuja origem na favela não o impede
de se afirmar por sua arte, ser abatido pela violência de seu meio – o que, se
não inviabiliza sua semente para o futuro (a nova geração, que, no plano final,
termina cantando), interrompe um percurso de superação de perspectivas cinzentas.
O pobre ali vira artista, mas, se sua arte permanece, ele tem de sair de cena. Também
podíamos detectar o desperdício de talento e habilidades, como as de Dalva e Orfeu,
nas imagens da performance corporal-musicada do pré-adolescente de Como Nascem
os Anjos (Murilo Sales). Prisioneiro de um encadeamento de acasos, aparentemente
planejados pelo destino para enredá-lo em uma tragicomédia de erros sem porta
de saída (acompanhado de sua amiga da favela), ele faz espetáculo da periferia
diante das câmeras, tornando-se imagem e sinal de cultura para os segmentos do
“centro”. Mas, condenado por uma lógica determinista a salientar a imobilidade,
termina matando e morrendo dentro de um movimento de auto-destruição de classe
(a mesma de CDD). Impasse é o sentimento de ordem. Poderíamos
ainda passar pela recusa de uma segunda chance ao bandido de Primeiro Dia
(Walter Salles), pela eliminação dos moradores da favela em 16060 (Vinicius
Mainardi), pela necessidade da ruptura com família e espaço nordestino em Abril
Despedaçado (o mesmo Walter Salles) e O Céu de Suely (Karim Aïnouz),
pela resignação da pobreza em uma nova configuração familiar no sertão de Eu
Tu Eles (Andrucha Waddington), pela violência em busca de novo ciclo no garimpo
abandonado de Latitude Zero (Toni Venturi) e pelo deslocamento estrada
fora dos novos retirantes sem muitas perspectivas de Caminho das Nuvens
(Vicente Amorim). No entanto, proponho que nos detenhamos, a título de critério
comparativo com Antônia, em outros filmes que mostram, em alguma medida,
a ascensão do pobre. Adotemos
como ponto de partida Cidade de Deus, no qual o fotógrafo amador Buscapé,
depois de resistir à contaminação do crime (por ser uma boa alma), encontra na
exploração imagética dos efeitos da pobreza na favela, o caminho da inserção no
capitalismo. Se sua comunidade começa a entrar de vez no buraco quente ao fim
do filme, sua trajetória, justamente por conta da degradação do ambiente, segue
direção ascendente. Há algo de sanguessuga em seu olhar documental, que o beneficia
individualmente, mas em cima do prejuízo geral – o que Ismail Xavier, pensando
nesse em outros filmes, chama de “pragmatismo do pobre”. Buscapé não será o olho
de seu espaço ou de sua classe, mas um olho a serviço da classe média/elite, na
qual tenta se inserir tendo de continuar onde está (preço da inserção, com um
pé dentro, outro fora, um alimentando o outro). Em Madame
Satã, de Karim Ainouz, o malandro da Lapa dos anos 30, diante de um espaço
no qual não se move ou se afirma sem vigilância e punição, impõe-se com o corpo.
Primeiro incorporando imagens e adereços de outros corpos em performances musicais-cênicas,
depois usando o corpo para reagir com violência a quem cria limites e coloca pedras
em seu caminho. Não se trata aqui de um caso de ascensão, mas de auto-imposição
ao espaço, sem a necessidade da ruptura e do deslocamento. No entanto, o talento,
sozinho, não afirma. Precisa da violência para fazê-lo irradiar. Em
O Homem que Copiava (Jorge Furtado), quando terminamos com os personagens
sob o Cristo Redentor, mas acima do Rio, vemos a legitimação, com explícito simbolismo
cristão, de uma transgressão libertária (roubo/morte). O pobre gaúcho, em melhores
condições que dos filmes abordados aqui, está melhor na fita. Mora razoavelmente
bem e tem fonte de renda, mas não tem dinheiro para, por exemplo, adquirir confiança
para impressionar uma possível namorada. A ascensão se dá sem necessidade de talento,
com a ajuda do acaso e com a determinação de mover obstáculos, com violência que
seja. Embora seja desenhista, o narrador-protagonista (negro não tematizado como
tal) não “vence” pela habilidade, mas com sorte e amoralidade (ou moral subversiva).
No entanto, por ser desenhista, talentoso, ele merece vencer – mesmo se passando
por cima de determinados limites. O Invasor salienta
a habilidade de Anísio, o matador com projeto de ser empresário, para adentrar
em outra classe como vírus, sem pedir licença – menos para tomar algo dos “de
cinema”, mais para se associar a eles, mas sem deixar de fazer o serviço sujo
dessa sociedade por força da circunstância. A única possibilidade de “ascender”
(ou de se infiltrar) mais uma vez passa pela ilegalidade, e não pela meritocracia
(definida nos termos do capitalismo – de oferta de habilidades como mão de obra
de determinada atividade econômica). Anísio não desenha, não canta, não fotografa,
não dança rap, mas é gênio do mal, ao menos se tomarmos a ótica do personagem
de Marco Ricca. Essa
mudança de registro em relação à mobilidade do pobre só se confirma sem a violência
e sem nenhum ferimento ético em Dois Filhos de Francisco, raro percurso
de vencedores no cinema brasileiro (tão voltado para os derrotados ou para os
mártires), que acompanha menos a ascensão em si mesmo e mais a batalha insistente
em nome dela – cujo êxito conhecemos antes do filme, por se tratar de um resumo
biográfico de Zezé di Camargo e Luciano. Seria apenas por conta da popularidade
dos cantores que o filme se tornou o mais visto desde os anos 80? Ou essa demanda
pela mobilidade social, encarnada literalmente e como emblema pela gestão Lula,
estaria no cerne da adesão do público ao filme? Retornemos
a Antônia. Ao contrário dos filmes terminados no impasse, fuga, prisão
ou morte, assim como ao contrário de outros nos quais a ascensão depende da violência,
do crime ou de ações “questionáveis” (para o senso comum ao menos), as quatro
cantoras da Vila Brasilândia, uma espécie de Cidade de Deus de São Paulo, abrem
trincheiras apenas com suas vozes, não sem titubear e tropeçar nas adversidades
típicas de seu ambiente social, que leva uma delas a matar, porém, não para remover
pedras do caminho em direção ao êxito. Elas têm um projeto semelhante ao Francisco
para seus Dois Filhos e ao dos Dois Filhos para toda a família. Nos dois casos,
o de Antônia e o de Dois Filhos de Francisco, a saída é individual,
não de uma comunidade, mas atinge um grupo (as famílias de quem sobe). Isso
não esvazia duas questões muito fortes contidas nessa mobilidade. Uma é a de relacionar
a mobilidade com o talento artístico – restando ao pobre, em última instância
(fora do crime), uma inserção na força produtiva pela criatividade. Quem não tem
sensibilidade para a criação, portanto, está descartado dessa operação (ao menos
no conjunto dos filmes). É uma espécie de darwinismo sócio-cultural, que,
em larga medida, reproduz a seletividade capitalista, pautada pela competividade.
A saída é sempre para um ou outro, nunca uma solução para a pobreza, ou mesmo
uma denúncia de suas estruturas. Tendo em vista que a mesma visão, em
outra escala, é encontrável em Jardim Ângela, documentário de Evaldo Mocarzel
sobre os bastidores de uma oficina no bairro periférico paulistano de mesmo nome,
pode-se supor nesse momento, não sem riscos de erros, que uma visão menos pessimista
para os pobres, desenvolvida no limiar entre o conformismo coletivo disfarçado
de estímulo individual e estímulo individual como forma de sair do conformismo
(ambíguo mesmo), esteja se tornando a pauta do cinema brasileiro na segunda gestão
de Lula. editoria@revistacinetica.com.br
|