A Mochila do Mascate, de Gabriela
Greeb
(Brasil, 2005)
por Eduardo Valente
Filme dentro do filme
Existem dois filmes em A Mochila do Mascate.
Um deles, não sem interesse, mas um tanto esquemático, retraça
os passos biográfico-artísticos de Gianni Ratto, cenógrafo e diretor
de teatro, através de uma autêntica viagem que acompanha o seu
trajeto pessoal (tanto geográfico quanto cronológico). Neste filme
especificamente, nós estamos frente a uma espécie de “Pensamento
Vivo de Gianni Ratto”, onde um material eventualmente “chapa branca”
em excesso (como o da maioria dos filmes biográficos, ainda mais
que este é co-roteirizado e produzido pela filha do homenageado),
permite que Ratto divida com o espectador uma série de pensatas
sobre a arte teatral – muitas delas fascinantes. Para que este
filme não parecesse por demais televisivo, a diretora insere aqui
e ali interpretações “visuais” de alguns destes conceitos, numa
retomada pouco inspirada de artifícios mais típicos da linguagem
da videoarte, que no fundo adicionam bem pouco ao material das
entrevistas.
O outro filme que está na tela, ainda que um tanto
subrepticiamente, é bastante mais rico e interessante. Nele, vemos
um homem inegavelmente fragilizado fisicamente, que busca reconstruir
sua vida através da memória (“eu nem lembrava que era assim” é
uma das frases que Ratto fala ao voltar para a Itália e rever
suas primeiras criações). Este filme possui mais de uma semelhança
com O Filme de Nick, dirigido por Wim Wenders, onde acompanhamos
o cineasta Nicholas Ray em suas últimas semanas de vida, e assim
como neste, revela o olhar de um artista frente à morte. É importante
notar que o filme de Greeb não assume este viés como seu tema,
mas ainda assim ele percorre cada seqüência do filme. Assim, a
passagem pela vida de Ratto (feita “com ele” e não sobre ele,
como faz questão de ressaltar a diretora) ganha uma pungência
inesperada de um passeio de despedida e redescoberta ao mesmo
tempo. Não por acaso, Ratto faleceu entre a realização e o lançamento
do filme.
Este segundo filme ganha ainda uma segunda dimensão
de interesse, uma vez que Ratto é um artista do teatro – e não
do cinema ou da música, por exemplo. O teatro, afinal, é a arte
do instante, a arte que se dá apenas em um momento conjugado entre
artistas e platéia presente, que não permite a sua reprodução
posterior. Assim, este passeio pela arte de Ratto é ainda mais
afeito a memórias imprecisas, a lembranças compartilhadas com
companheiros de vida, mas sem a possibilidade do recurso à exibição
de trechos dos trabalhos. Mesmo quando podemos supor que alguns
deles tiveram registro em vídeo, estes não aparecem no filme se
não por fotos, maquetes, desenhos – que apenas ajudam a dar uma
condição ainda mais mítica. Não por acaso, o momento mais marcante
do filme é quando ouvimos a voz de Bibi Ferreira interpretando
Gota d’Água: registro apenas parcial (pois sem imagem)
de uma expressão artística, mas também de um pedaço de vida, que
parece entoada do fundo de uma memória fugidia. E é assim que
a vida de Ratto se iguala à sua arte em A Mochila do Mascate:
ambas surgem finitas, marcadas no seu tempo e na História, e produtos
já mais da memória do que de uma presentificação possível. É este
segundo filme, verdadeiro ensaio sobre a eterna finitude (ou a
finitude eterna) do Homem e da Arte, que realmente interessa e
emociona.
editoria@revistacinetica.com.br
|