Morro do Céu, de
Gustavo Spolidoro (Brasil,
2009)
por Fábio Andrade
As
grades do rigor Morro do Céu parte de uma estrutura
interessante, além de um pouco negligenciada no panorama de produção brasileiro:
usar um material captado de forma documental para organizá-lo tal qual um filme
de ficção, construindo uma dramaturgia. Isso, porém, nunca fica literalmente expresso,
podendo apenas ser intuído pela maneira como as cenas se apresentam. Não temos
discussões metalinguísticas dentro do filme, ou um plano sequer onde há presença
do diretor – nem mesmo em voz off – ou da equipe. Na verdade, não existe
equipe, tampouco: Morro do Céu é captado solitariamente por Gustavo Spolidoro,
e organizado como material contínuo na montagem. A impressão – ou incerteza –
de estarmos diante de uma organização ficcional é questão de estrutura: em cada
sequência, predomina a montagem em raccord espacial ou sonoro, enquanto
a estrutura-macro do filme organiza essas sequências entrecortadas por elipses.
Não estamos, como em alguns dos filmes exibidos na Semana
dos Realizadores, perto de Jogo de Cena, Santiago ou Serras da Desordem;
mas sim, de Robert Flaherty e Jean Rouch. Existe, porém, uma certa subversão
da abordagem comum a ambas as referências. Pois enquanto Flaherty e Rouch partiam
da re-encenação de costumes para fins etnográficos, aqui, a aproximação de Spolidoro
com as personagens e o espaço é de essência narrativa ainda mais primária: construir
um autêntico boy meets girl. A ida à serra italiana do Rio Grande do Sul
– local que, para além do túnel, carrega um ar de novidade cinematográfica semelhante
ao das serras japonesas de Suzaku, de Naomi Kawase – é para acompanhar
um rapaz chamado Bruno e, como logo descobrimos, sua primeira paixão por uma menina
de Potiporã – cidadezinha próxima ao morro onde o rapaz mora com a família, que
dá título ao filme. Existe, sim, um interesse por tudo aquilo que torna esse espaço
particular: dos sotaques que fazem pensar em Fargo, aos costumes e festas
que mobilizam aquela comunidade. Mas, ao fim das contas, a ambientação prepara
uma atmosfera para aquilo que mais interessa a (e em) Morro do Céu, que
é justamente a possibilidade de se construir dramaturgia a partir de algo tão
mínimo e avassalador quanto uma primeira paixão. Esse frescor da situação filmada
envolve o filme em um prazer bastante raro, que se vive em pequenas doses ao longo
da projeção. Mas
uma primeira paixão pode ser tudo, menos modesta em seus arroubos. É preciso atenção,
portanto, à maneira como Gustavo Spolidoro se aproxima do que ele filma, para
se perceber problemas que se escondem – com bastante facilidade, e alguma justiça
– atrás de uma beleza plástica que, embora notável, é incapaz de reproduzir integralmente
esse feelgood. Spolidoro determina, para a câmera e a montagem, um protocolo
tão fechado de convenções que acaba por desperdiçar, em grande parte, aquilo que
poderia produzir um impacto realmente especial a partir delas; o momento em que
uma primeira paixão pode se tornar uma paixão de (e por) cinema. Pois o jogo estabelecido
por Bruno e sua pequena – muito sabiamente deixada sempre no extracampo – é uma
dança de atração e repulsa, cheia de regras sociais que a própria paixão inspira
a quebrar; algo que raramente contamina o filme. Sobrevivem os planos fixos, enquadrados
com notável rigor (existem, ao menos, uma meia dúzia de planos de extraordinária
beleza de composição), que observam a cena com um pudor enorme em interferir naquilo
que ela filma. Percebam, porém a diferença entre se filmar
o pudor, e filmá-lo com pudor: mesmo nos filmes que mais abertamente
se entregam à observação – de Lumière a Wiseman –, o salto da reportagem pro cinema
sempre esteve na reorganização de um espaço a partir de uma impressão que a dinâmica
interna desse espaço produzia, e determinava à câmera. Mesmo no mais estrito cinema
direto, o espaço sempre se curvou às deformações da zoom. O que falta a
Morro do Céu para ser um grande filme – pois não há dúvidas que, mesmo
quebradiço, o interesse que ele suscita é íntegro – é perceber que só faz sentido
oferecer às situações filmadas uma mise-en-scène que é anterior a elas
se essa inadequação produzir um curto-circuito. Aqui, isso não existe; se perde,
com isso, tanto a crise quanto a entrega. A
reticência em interferir não pode ser confundida com ética: às vezes é preciso
se aproximar, se afastar, se colocar criticamente dentro de uma situação para
produzir, assim, um sentido novo dentro dela. Caso contrário, o que resta é um
protocolo anterior, paralelo ao que é filmado, que nem sempre é capaz de
extrair toda a potência das situações que se oferecem para a câmera. Esse problema
é perceptível tanto na maneira de enquadrar quanto, ainda mais gravemente, na
montagem. Pois a insistência nos planos médios e gerais é lentamente sabotada
pela estranha opção de deixar todos os planos com uma duração quase padronizada,
com cortes que piscam na tela a cada seis segundos, sem produzir com isso um efeito
significativo. Morro do Céu poderia ter a mesma duração com 2/3 dos planos
que tem, não por uma defesa incondicional da duração, mas sim de planos essenciais,
que durem o quanto sua ação interna solicitar. Muito parecido
com filmes como A Casa de Sandro, de Gustavo Beck, e Dia dos Pais,
de Júlia Murat e Leonardo Bittencourt, Morro do Céu mostra uma enorme consciência
na organização interna do plano – da unidade cinematográfica – que não se repete
na sensação de unidade que precisa conjugar esses planos. A relação com o filme
se dá neste terreno ao mesmo tempo desigual e estimulante, onde o impacto de cada
partícula nunca extravasa para a obra completa, mas é ainda forte o suficiente
para sustentar um certo transe. Talvez seja esta a maior dificuldade da passagem
dos filmes de curta-metragem para os longas: perceber que os atos respondem a
um corpo muito maior, que depende ainda mais de uma harmonia, de um equilíbrio
entre tempos e formas visuais – algo que, no curta, é mais fortemente condicionado
ao impacto de cada golpe. Quanto maior o corpo, mais sensível ele é à vertigem.
Por conta disso, o filme de Gustavo
Spolidoro inspira sensação muito semelhante à linha do trem inacabada que seus
protagonistas visitam, transitando em um limite tenso entre o que não foi descoberto
e o que foi abandonado. Após a desilusão amorosa – o fim da história, e o fim
da noite – vemos Bruno caminhar, sobre os trilhos, de volta para a casa. Em plano
mais aproximado, o rosto do garoto aparece em contraluz, completamente escuro,
cercado pelo leve brilho da noite. Na banda sonora, ouvimos o barulho do trem
em movimento, sem sabermos se o som é sobreposto àquela cena, ou se o trem se
aproxima, de fato, fora do quadro. Nesses segundos onde a diegese é suspensa,
jogando o espectador em um estado de indefinição que o aproxima da personagem,
Spolidoro constrói, enfim, um momento de grande força – que será, em parte, neutralizada
pelo restabelecimento da diegese no plano final. Ali, no casamento de dissonâncias
que move aquele plano, parece existir o grande filme que Morro do Céu nunca
chega a ser. Setembro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
|