ensaios Um
fantasma se movimenta O vazio em Moscou
como gesto, ideia e presença por
Daniel Caetano “O método de Coutinho, desde
Cabra Marcado para Morrer, de 1984, sempre foi estabelecer uma relação
intensa com pessoas que têm o desejo represado de serem ouvidas e de terem seus
depoimentos registrados.(...) Ao abandonar esse procedimento, Coutinho se acomodou
no lugar de espectador privilegiado da ação e incorporou o conformismo das personagens
de Tchekhov. Coutinho é o grande ausente de Moscou.” Eduardo Escorel,
no artigo “Coutinho não sabe o que fazer”, Revista Piauí.
“O
autor não está morto, mas pôr-se como autor significa ocupar o lugar de um morto.
Existe um sujeito-autor e, no entanto, ele se atesta unicamente por meio dos sinais
da sua ausência. Mas de que maneira uma ausência pode ser singular? E o que significa,
para um indivíduo, ocupar o lugar de um morto, deixar as próprias marcas em um
lugar vazio? O lugar – ou melhor, o ter lugar – do poema não está, pois, nem
no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se
põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso.(...) No entanto,
o texto não tem outra luz a não ser aquela – opaca – que irradia do testemunho
de sua ausência. Precisamente por isso, porém, o autor estabelece também o
limite para além do qual nenhuma interpretação pode ir. Onde a leitura do poetado
encontra, de qualquer modo, o lugar vazio do vivido, ela deve parar. Pois tão
ilegítima quanto a tentativa de construir a personalidade do autor através de
sua obra é a de tornar seu gesto a chave secreta da leitura.” Giorgio Agamben,
no texto “O Autor Como Gesto”, do livro Profanações.
A recente
controvérsia em torno de Moscou não me pareceu de todo injusta. Na verdade,
ela parecia responder às questões que Moscou procura levantar acerca da
relação entre filme e obra, entre um gesto bastar-se em si ou ganhar sentido como
parte de algo mais amplo. Conforme sugere essa sequência da afirmação de Escorel
de que “Coutinho está ausente” e da consideração de Agamben acerca da ausência
intrínseca à figura do Autor, acho que Moscou usa como base estrutural
essa apontada ausência e que, desta forma, faz do olhar sobre ele, filme, um olhar
sobre a obra. Para provocar isso, o filme apresenta uma perspectiva em queda,
transmite uma sensação de falta de chão, de abismo. Moscou
procura conciliar ao máximo o inesperado com os mecanismos de controle: o
diretor do filme – seu personagem fundamental – escolhe um grupo de teatro, seleciona
com eles um texto clássico e chama um outro diretor para orientá-los na feitura
da peça. Desta forma, o diretor do filme cria um filtro explícito ao seu domínio:
ele escolhe fazer o filme, escolhe o grupo, indica determinados caminhos – mas
há, explicitamente, atores interpretando papéis; e, além disso, há um outro diretor
fazendo a construção da peça com os atores. No entanto, como há muito já se sabe,
é através da seleção posterior dos registros que o diretor do filme opera seu
controle de forma mais firme, justamente porque é invisível. E é nesta escolha
própria da montagem (o momento criativo posterior à filmagem) que o autor-personagem
pode exercer seu controle e indicar sua intenção ao selecionar apenas determinados
trechos do texto encenado. Seu objetivo explícito, mencionado por ele mesmo como
personagem-autor, é trazer à cena a idéia de incompletude; pois, através dessa
incompletude, o filme reconfigura o panorama sobre a sua obra.
Moscou,
o antes e o depois Não
é difícil apontar exemplos de que os discursos sobre Moscou tendem a se
organizar como perspectivas sobre a obra de Eduardo Coutinho a partir do filme
(ou sobre o filme como consequência dos trabalhos anteriores, o que dá na mesma),
mais do que olhares que apontem diretamente para as imagens e sons que compõem
o filme. No entanto, antes de ser uma visão viciada, me parece que é o próprio
filme Moscou que constrói esta perspectiva para fora de si. O filme organiza-se
a partir da ruptura com as escolhas até então feitas nos filmes que compõem a
obra de Eduardo Coutinho – e, desta forma, trabalha em favor da renovação de um
projeto estético. Este impulso é tão presente que se torna a visão central do
filme – e, assim, uma perspectiva restrita àquilo que o filme apresenta acaba
por ser diáfana, caindo na incompletude programada de Moscou.
Desde
o documentário Boca de Lixo, Eduardo Coutinho concentrava seus filmes nas
entrevistas que fazia com pessoas – eram filmes de conversa, como ele definiu.
A partir da exibição em festivais e distribuição de Santo Forte, Coutinho
tornou-se um nome central nas discussões sobre o que havia de mais instigante
na produção de cinema, produzindo filmes seguidos dentro desse modelo de conversas:
Babilônia 2000, Peões, Edifício Master, O Fim e o Princípio,
filmes em que a câmera registrava suas perambulações (como uma versão tupiniquim
de Woody Allen, certamente menos egocêntrica). Depois deste último, que parecia
indicar um esgotamento da fórmula, Coutinho filmou Jogo de Cena, filme
que deliberadamente mistura os registros documentais com representações de atrizes.
Foi, conforme se disse, uma reinvenção da obra; mas, na verdade, cada um dos filmes
anteriores também parecia provocar a reinvenção da obra – ou melhor, cada um deles
parecia tornar mais claros os filmes que o antecediam. Conforme
diz Felipe Bragança, na apresentação do recém-lançado livro de entrevistas que
organizou, composto por entrevistas de Coutinho: “Os personagens não-ficcionais
de Coutinho não são pessoas reais a serem desvendadas, são, sim, duplos fabulares
que se propagam pela vontade de afirmação, imaginação e narratividade de quem,
como diz Coutinho, faz o filme JUNTO com ele. (...) Paradoxo dos paradoxos, quanto
mais Coutinho consegue articular o teor dramatúrgico dos seus personagens com
a aspereza austera de sua dieta estética, mais liberto, mais liberdade, parece
exprimir o seu cinema.” Nesta perspectiva, a reorientação
de caminho de Jogo de Cena, que inclui explicitamente registros ficcionais,
parece ser ao mesmo tempo uma traição e uma continuidade natural deste percurso:
para indicar que o interesse nas conversas não reside sequer no grau de realidade
das falas, mas na sua performance, o filme quebrava a impressão de registro real
ao misturar conversas registradas com conversas falsas, representadas por
atrizes profissionais. Há algo que se desmancha no percurso (e este desmanche
dará base ao experimento de Moscou): se nem mesmo falas originais são necessárias
para as conversas do cinema de Coutinho, então é o caso de registrar a performance
de profissionais representando conversas que fazem parte de um texto clássico.
Haverá aí, nesta fé da performance, alguma verdade da conversa? Sobre
esta postura, Eduardo Coutinho afirmou o seguinte anos atrás, numa entrevista
que deu ao site Cinestesia: “Nenhum filme filma a verdade. Se você fizer um
filme etnográfico, a câmera ficar parada três horas no quintal e depois quatro
horas em uma mulher socando pilão, é uma ilusão achar que o cineasta está conhecendo
o real. Ele está documentando um encontro entre o cineasta e o mundo, sempre.
Eu não filmo senão esse encontro, filmo uma relação.” Em
todos estes filmes mencionados, sempre se tratou, portanto, de um objetivo final
(documentar, de forma mais ou menos explícita, um encontro entre o cineasta e
o mundo), em nome do que se desenvolveu uma estratégia que, a cada vez, procurava
se tornar mais perceptível e clara. Esta estratégia até então baseava-se num procedimento
visível: a câmera e Coutinho abordam depoentes diversos, registrando a conversa
que surge dessa abordagem. No caso de Jogo de Cena, então, o gesto foi
de abrir mão do objetivo final em certos trechos – ao escolher um texto para uma
atriz, o cineasta já não está encontrando o mundo que filma, ele está definindo
o que irá filmar, ou seja, está usando o seu poder de criar o mundo das imagens.
Como
aponta o crítico Jean-Claude Bernardet, isso cria um impasse na hora de voltar
ao objetivo final. Moscou nasce desse impasse, pois precisa incluir o controle
da encenação dentro do mundo que se irá encontrar. Uma vez exposto esse controle
da encenação, que verdade se pode encontrar? Sendo assim, Moscou,
ao contrário dos filmes que o antecederam, não se organiza a partir de depoimentos
nascidos de encontros do cineasta com outros. A este filme, dentro da obra, cabe
o papel de tatear um caminho que se siga à ruptura com o objetivo básico – a encenação
passa a ser controlada, mas o registro aposta que surgirá daí um outro mundo a
ser encontrado. Portanto, talvez Moscou demonstre pela primeira vez, pela
intenção expressa de falar da incompletude, que os filmes de conversa não eram
filmes de encontro, ao contrário do que dizia Coutinho: eram, na verdade, filmes
de busca incessante.
Isto, é claro, se enxergarmos Moscou como
um elemento fundamental de uma obra, que dá a ver dela algo que não se podia ver
até então; desta forma, Moscou seria um filme que só agora esclarece plenamente
o projeto acompanhado pelo público desde Santo Forte. Outra perspectiva,
oposta a essa, seria a de que o filme não pode ser visto como uma chave interpretativa
para os trabalhos que o antecederam – a partir deste ponto de vista, cada filme
que Coutinho fez desde então nasceu de circunstâncias próprias, a que o seu método
se adaptou e se confrontou. Na primeira perspectiva, Moscou é uma consequência
natural e um gesto em busca dos limites de sua proposta inicial; na segunda, o
filme é um abandono dessa proposta. Ao buscar a incompletude e se organizar de
modo a apresentá-la, o filme parece existir como um imenso vazio, um vazio que
dá lugar às questões de um forte projeto estético. Na primeira perspectiva, a
guinada deste forte projeto estético é o que dá encanto do filme; na segunda,
é o que pode asfixiá-lo. O autor e a obra
Antes de procurar no filme os modos de como isso se dá, convém lembrar de uma
questão precedente: por quê apresentar essa ruptura, esse abandono do modelo anterior?
Em diversos textos sobre o filme esse movimento de ruptura é apontado, e Jean-Claude
Bernardet se mostra intrigado com um aspecto desta questão: “Que Coutinho tenha
deixado de ser o sujeito que provoca e recebe a fala de um outro, acho que é uma
consequência lógica e inapelável de Jogo de Cena, isso posso intuir. Que
ele tenha deixado de ser um cineasta que se desloca, eu não entendo”. O espanto
de Jean-Claude tem razão de ser: a ruptura indica que não há acomodação num modelo
fixo, que há renovação autoral; mas isso indica também insatisfação.
Pode-se
notar essa preocupação num comentário feito pelo diretor sobre o trabalho de outro
documentarista, o norte-americano Frederick Wiseman: “O que me irrita no Wiseman
é que a neurose dele é diferente da minha. Quer dizer, a psicose dele é diferente
da minha. E eu falei com ele: há trinta anos que ele faz o mesmo filme. Tudo bem,
acho justo. Mas eu perguntei pra ele, “Em trinta anos, você nunca teve vontade,
perguntou alguma coisa, interferiu em alguma coisa?”. “Não”. Realmente,
é um granito.” Esse
gesto de busca, de evitar a manutenção de uma postura granítica, indica a crônica
insuficiência, para esse autor fantasmático, do que se fez antes. Se ao trabalho
bastasse mostrar a beleza do encontro entre o cineasta e o outro, não haveria
nada de errado em filmar centenas, milhares de vezes filmes similares a Edifício
Master, encontrando a cada vez novas pessoas, novos outros. Mas isso simplesmente
não basta neste caso – seria o tal “aprisionamento” no modelo. Daí é preciso
gerar a crise no modelo – crise que leva à ruptura de Moscou. Assim, o
gesto de busca é o que define o movimento que leva a Moscou – um movimento
em falso, gesto dentro do vazio, que reinventa um fantasma que vai além de si:
a obra autoral. Este gesto transgride o ponto fundamental do próprio objetivo
de encontrar o mundo, justamente por usar invisivelmente seu mais forte
recurso – a seleção de imagens – para fazer do encontro a expressão desse vazio. A
criação artística não nasce apenas de gestos de representação e afirmação, mas
também do seu contrário, do gesto de não-representação e não-afirmação – como
ocorre em relação a qualquer espécie de potência, conforme afirma Agamben em outro
ensaio, “A potência do pensamento”: “Quando não vemos (quer
dizer: quando nossa vista permanece em potência), ainda assim nós distinguimos
o escuro da luz, vemos, por assim dizer, as trevas como cor da visão em potência.
O princípio da visão “é, de alguma forma, colorido”, e as suas cores são
o escuro e a luz, a potência e o ato, a privação e a presença. Isso significa
que sentir ver é possível porque o princípio da visão existe tanto como potência
de ver quanto como potência de não-ver, e esta última não é uma simples ausência,
mas algo existente, a exis de uma privação. (...) Se a potência fosse,
de fato, apenas potência de ver ou fazer, se ela existisse como tal apenas no
ato que a realiza (e uma potência assim é aquela que Aristóteles chama de natural
e destina aos elementos e aos animais alógicos), então nunca poderíamos ter a
experiência do escuro e da anestesia, nunca poderíamos conhecer e, portanto, dominar
a steresis. O homem é o senhor da privação porque mais que qualquer outro
ser vivo ele está, no seu ser, destinado à potência. Mas isso significa que ele
está, também, destinado e abandonado a ela, no sentido de que todo o seu poder
de agir é constitutivamente um poder de não-agir e todo o seu conhecer; um poder
de não-conhecer.” Pode-se
reconhecer o projeto estético dos filmes de Eduardo Coutinho a partir de suas
negações, como já afirmei anteriormente ao analisar de que maneira cada filme
respondia a uma questão que se levantava sobre o filme anterior, mas não só por
isso: é também a negação à escolha estetizante acerca da colocação da câmera,
da escolha de lentes, do uso de ruídos ou música, da definição prévia de diálogos
a serem decorados pelos atores. Com relação a tudo isso, Coutinho se nega a nos
dar uma perspectiva impositiva e anti-natural: sua câmera fica convencionalmente
à altura dos olhos; a objetiva é a que mais se aproxima do ângulo de visão do
olho humano; as cores são equilibradas; não há música ou ruídos externos à ação
documentada; e, até Jogo de Cena, as falas eram produzidas pelos próprios
depoentes, de uma forma que, se não se pode afirmar como espontânea, era, de todo
modo, independente da imaginação do realizador. Sobre isso,
já afirmou Coutinho em uma entrevista: “Eu faço documentário para não ter que
preparar um roteiro. E para mim escrever é insuportável porque eu tenho que escolher
palavras, e o mundo das palavras é infinito, cada palavra gera dúvidas e dramas
de consciência. E eu opto pela reportagem, pelo improviso, diferentemente da maioria
dos documentaristas, porque aí eu me livro de outro problema tão insolúvel na
minha consciência quanto o da palavra: onde colocar a câmera?” Ou
seja, ante a dúvida sobre que palavras e imagens afirmar, em detrimento de outras,
o documentarista faz uma escolha que forma o seu método: ele abre mão deste controle
absoluto da criação de sentidos. Antes de definir o que quer, o autor define o
que não quer. Não quer recriar o mundo, quer encontrá-lo. Não quer retratar “movimentos
sociais” ou qualquer outra aglutinação redutora, mas apenas a fabulação das pessoas,
decorrente das respostas às questões que ele provoca. Com Moscou, no entanto,
o gesto negativo se torna maior, opressivo mesmo; como já disse, o autor-demiurgo
se impõe através de um vazio planejado. Desta forma, Coutinho tira deste filme
a sua presença inquieta e joga o seu fantasma.
Cito novamente “O autor
como gesto” de Agamben: “O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na
obra. Jogada, não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode
fazer além de continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que
torna possível a leitura, o vazio lendário de que procedem a estrutura e o discurso.
O gesto do autor é atestado na obra a que também dá vida, como uma presença incongruente
e estranha, exatamente como, segundo os teóricos da comédia de arte, a trapaça
de Arlequim incessantemente interrompe a história que se desenrola na cena, desfazendo
obstinadamente a sua trama.” Não aconteceu nada? E
de que forma o filme nos permite afirmar que ele usa explicitamente o recurso
de seleção (ou montagem) para buscar esse vazio, essa ideia de incompletude? A
partir de um punhado de evidências que nos são dadas. O motor de Moscou
é o seguinte: Coutinho procura o grupo de teatro Galpão para registrar o trabalho
dos atores durante a preparação de uma peça – preparação que é feita apenas para
o filme, pois a peça não vai estrear no teatro, não precisa sequer ficar pronta;
essa peça em preparação deve apenas ser desenvolvida para que este processo seja
registrado pelo filme. O filme, então, não apenas procura uma encenação para registrar,
ele a provoca. E há ainda um filtro entre o autor do filme e a encenação dos atores
– há um diretor da peça que está em processo, Enrique Diaz, convidado por sugestão
do próprio Galpão. Coutinho seleciona o grupo a ser registrado, escolhe uma peça
clássica a ser encenada - As Três Irmãs, de Tchekhov -, e inclui no processo
um outro diretor. Cada um desses movimentos parece buscar um equilíbrio entre
controle e descontrole; e são eles que darão sinais do controle exercido pela
seleção feita na montagem.
No seu polêmico texto, Eduardo Escorel comete
uma interpretação precipitada, bastante surpreendente justamente por vir de um
profissional com tanta experiência na montagem de filmes. Escorel escreve o seguinte: “À
diferença de um filme de ficção, o que acontece diante da câmera, em um documentário,
é imprevisível. E na gravação de Moscou, nada aconteceu. Ao contrário do
fio de intriga das peças de Tchekhov, célebres pela dimensão trágica, sem que
a narrativa seja estruturada através do encadeamento de eventos, no filme a ausência
de acontecimentos e conflitos não tem relevância dramática. (...) Ao propor a
encenação, Eduardo Coutinho sabia estar fazendo uma aposta de risco. Esperava
que o confronto das personalidades envolvidas no ensaio fizesse surgir algo que
pudesse documentar. Mas gravou cerca de oitenta horas, com duas câmeras, e nada
de interessante ocorreu.” Não me parece tão simples afirmar
que “nada de interessante ocorreu” na gravação de Moscou a partir
tão-somente da versão final do filme. Escorel teria mais base para afirmar que
não viu nada de interessante no resultado final – mas, para fazer a afirmação
que fez, precisaria ver todo o registro que não entrou na montagem final. Ou melhor,
precisaria estar presente no momento do registro, para saber se nada havia de
interessante a se registrar. Cabe
relatar aqui um depoimento extra-filme. Há poucos dias, em 1º de agosto, Enrique
Diaz, o diretor da peça em processo que faz parte do filme, deu uma entrevista
a Alessandra Colasanti num evento chamado Assembleia Geral – e, nesta ocasião,
relatou que um dos atores do elenco entrou numa forte crise pessoal por conta
dos trabalhos da encenação para o filme. Segundo Diaz, em certo momento esta pessoa
explanou seu problema na frente da câmera – e este registro não foi incluído na
montagem final. Testemunhos sobre a realização certamente não são indícios dados
pelo filme, mas este que mencionei pode nos ajudar a desconfiar que Escorel está
enganado – que talvez tenha sido uma intenção da montagem final não apresentar
no filme nada que ele considere “interessante”. Essa desconfiança pode nos levar
a pensar sobre a razão de não apresentar entre os instantes selecionados nenhum
momento de interação entre atores e diretor da peça – não se vê discussão sobre
o texto entre eles, nem há registro das marcações de movimentação ou qualquer
tipo de trabalho de experimentação e diálogo. Depois da explicitação, há um desaparecimento:
após surgir no início dando vagas indicações ao grupo, Diaz logo se torna tão
invisível quanto Coutinho, funcionando como um filtro imaginário à figura autoral,
o que só a reforça como instância superior.
Pois há no filme um comentário
dele, Diaz, que indica a estratégia traçada: é quando ele diz ao elenco que, segundo
as indicações de Coutinho, eles deveriam “construir” o texto, ao invés
de “desconstruir” – embora ele, Diaz, seja considerado hoje um diretor
com talento excepcional para “desconstruir” textos clássicos, ou seja, representá-los
de forma crítica e não-convencional. Para o filme previamente planejado, no entanto,
era preciso usar o trabalho dos atores dentro de um certo modelo clássico, já
que a exposição da estratégia de registro é, em si, uma perspectiva crítica sobre
a representação; permitir que a peça se desenvolvesse de forma crítica faria do
filme não mais o registro programado de um processo de encenação, mas ele próprio
parte do movimento de crítica gerado pela encenação.
Há ainda um último
ponto que torna definitivamente clara a disposição de esvaziar a cena cinematográfica
em Moscou, o movimento em falso que joga o espectador num projeto estético
em abismo: é o uso do texto de Tchekhov. De todo o resto se poderia argumentar
que “nada de interessante aconteceu”, como faz Escorel – pode-se imaginar
que não havia material a ser recolhido nas discussões entre diretor e atores,
tampouco nas diferenças que poderiam ser percebidas na interpretação de uma mesma
pessoa em dias diferentes,
nem mesmo no cotidiano de um grupo que se vê todos os dias em nome de um projeto
artístico. Diante de todas essas possibilidades, sempre se pode imaginar que a
câmera não registrou nada de interessante, seja porque de fato nada aconteceu
e o cotidiano de encenar uma peça é algo incrivelmente monótono, seja porque ela
simplesmente não estava ligada na hora. Isso de fato poderia ser imaginado diante
do resultado, em que os momentos de maior surpresa nascem de detalhes – como uma
canção de Roberto Carlos apresentada de forma pretensamente encantadora, num instante
em que a estilização se apresenta como surpresa. Mesmo diante destes indícios,
seria possível supor que a câmera estivesse de fato interessada em apontar para
um mundo em que a incompletude se revelasse parte essencial da vida; mas é no
uso do texto de Tchekhov que a estratégia fica explícita. Pode-se
comprovar isso comparando o texto original com a adaptação que Coutinho, de forma
intencionalmente incompleta e filtrada pelo nome de Enrique Diaz, entrega a seus
espectadores: em Moscou, As Três irmãs é uma peça que parece se
resumir a um lamento permanente de insatisfação, a um movimento intencionado e
sonhado que nunca se completa. Trata-se, na visão do filme de Coutinho, de uma
peça sobre a frustração, sobre um futuro que não chegou e não chegará, sobre personagens
que se mostram sempre carentes do sonhado deslocamento para o centro. Há na peça
original, no entanto, uma carga emotiva que o filme não busca. São sentimentos
que irrompem e se declaram, amores que se explicitam e não conseguem se realizar
– há na peça, enfim, um movimento das personagens que é próprio da vivência do
presente: elas anunciam suas emoções, tomam decisões, refazem percursos. Em suma,
o percurso dessas personagens, no texto que deu base à peça apresentada no filme,
é apresentado para dar a ver aos espectadores emoções de várias cores. E as cenas
escolhidas para serem vistas no filme parecem apenas expressar o vazio, essa incompletude
que desde o princípio norteou o projeto. Nenhum dos conflitos que indicam as escolhas
e afetos das personagens é trazido à tona – apenas a carência de movimento e a
sensação de perda de lugar. Novamente, segundo Agamben: “ Se chamarmos
de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar
que, exatamente como o infame, o autor está presente no texto apenas em um gesto,
que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central.” “Um
filme profundamente melancólico”, disse Bernardet. De fato o é, uma vez que,
como já disse, parece existir sobretudo como chave complementar e definidora de
um projeto estético. Isso torna o filme imensamente diferente dos demais filmes
de Coutinho não apenas por quase abandonar as conversas, mas também por apresentar
uma estilização de imagens sem paralelo nos seus outros filmes. Incerto do seu
próprio caminho, por outro lado Moscou apresenta convicções bastante claras
do que não deve seguir – mesmo que o filme indique não saber o que quer, ele torna
bastante claro tudo aquilo que não quer (e, nisso, encontra um parentesco com
o último filme de João Salles, Santiago). Consequentemente, se Moscou
indica ser uma obra sacrifical em favor do projeto estético da obra autoral, esta
dá a impressão de se renovar e oxigenar-se enquanto, por outro lado, o próprio
filme acaba asfixiado pelas exigências desse projeto. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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