Muita Calma Nessa Hora, de Felipe Joffily (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

Muita Calma Nessa HoraDesejo sem libido

Partindo da premissa de que o filme estabelecerá o pacto de irmandade com a bronzeada audiência, Muita Calma Nessa Hora, lançado na antevéspera natalina, a princípio se adequa à onda dos "filmes de verão", regidos pelas férias escolares, pela premência de bilheteria, pelas prováveis continuações com o mesmo núcleo base de atores, diretor, roteirista. Proposta válida, especialmente quando se tem em conta uma abertura de fidelização, a sagacidade necessária para se deixar clara a idéia de que o cinema brasileiro não é feitiço tosco, daqueles que se deva chutar por preconceito - medo - no meio da estrada. Tal combinação deveria ter o efeito de uma avalanche pós-adolescente: sol, mulher, comédia, cerveja. Misturam-se no comboio uma pitada de gergelim - vitamina E, refrescante - com gotas de libertação feminina. Ocorre que a concretização do desejo deve pressupor, diria o bardo de charuto, alguma libido. Libido e pastiche se contradizem. Ainda mais quando embrulhados em um roteiro que alinha gags e estereótipos supondo que a fama televisiva dos envolvidos dê conta do recado.

Entenda-se bem: não se pretende do filme algo mais do que ele próprio se propõe, ou seja, “divertir” de maneira plana, deixar fluir o hábito de ir ao cinema e dialogar com o mais amplo público possível. O que se quer dizer é que mesmo entre aqueles que vão ao cinema catequizados para tanto, o filme poderia dar uns caramelos a mais. Existe um vazio nos personagens, quebrado apenas nos momentos de uma piada ou outra, que o espírito de determinado ator consegue alcançar. Improvável que entrem na galeria de ouro, como um Valente (Menino do Rio, direção de Antonio Calmon) ou um Marcelo (Marcelo Zona Sul, de Xavier de Oliveira). O inconformismo - a ida para Califórnia, ouvindo o bolero de Lulu Santos, ou a fuga de casa no estilo beatnik - aparece aqui travestido de superficialidade.

Três garotas que nitidamente não se suportam fingem que são melhores amigas, a elas se juntando a riponga que lá pelas tantas dirá que as tem como irmãs, regadas ao "O Que É, O Que É", clássico de Gonzaguinha, reduzido a campeão dos karaokês e especiais de fim de ano. Búzios como epicentro - olhem aí o sol, a praia, a mulherada - reúne os destinos dos surfistas e de Tita, Aninha, Mari, Estrella, olhadas com desespero pela doméstica que acha existir ali algum convescote lésbico. Vá lá: uma cena delas em tête-à-tête levantaria autenticidade e quebra de expectativa - caso realizada a contento - muito maiores do que repetir jargões soporíferos. Joffily tenta amarrar o caldo, falar o estilo novela salpicando alguma variação - a cena de sexo entre Tita e Juca traz um filtro mais adocicado, para se supor o carinho entre os dois. Ainda assim, o merchandising repetitivo, mal equacionado, e a falta de agilidade em costurar os núcleos da narrativa, atropelam como erros mesmos do filme.

Muita Calma Nessa HoraEvidente que os personagens, o pacote completo deles - que incluem o argentino, o gay esplendoroso, o almofadinha, o louco com um cachorro na coleira - são figuras que podem render risadas, paródias fáceis. Falam com a platéia que igualmente se acostumou - se não for a própria - com a multidão insuportável das noites, criaturas que andam juntas e atormentam as vestais. No papel, está tudo bem pensando e manipulado para agradar, mas existem alturas que poderiam ser atingidas e permanecem calminhas, intocadas. As Melhores Coisas do Mundo, vizinho em 2010, de Laís Bodanzky, demostra amizade no que há de amizade - verídica, apesar do suporte ficcional -, e idem no que se refere às descobertas, à correria, ao ímpeto de ser filho, irmão, namorado, adolescente que deixa de ser tábula rasa. Ninguém há de levantar a bandeira de que se trata de um compêndio sociológico, aborrecido, cheio de corredores, sobre a fina flor da juventude. Agrada, desopila. Em sala de aula, os dois filmes não pertenceriam à mesma turma, sentariam em fileiras diferentes: Muita Calma Nessa Hora quica petardos abrindo mão da discursividade, balas juquinha agradando pelo excesso de açúcar - ou aspartame, caso se queira entrar no modelo torneado e saradamente correto. 

O acerto de Muita Calma Nessa Hora acontece pelo acaso, sem ser ponderado. Encostando um olhar mais atento para a restinga de dramaturgia, o aspecto positivo reside no que não foi mirado, mas é lebre que sai trotando pelo bosque. A tão simplória busca das meninas, viajando para o que sequer designam, batendo na tendência do "vamos nos divertir". Não entendem bem o que acontecerá com elas, não se fundem em um desejo genuíno, certeza há nenhuma, tateiam algo durante o caminho. Nesse desbunde de aparências, servem de símbolo para o folclore da era botox. Curioso de se ver. A suposta agressividade no sexo - dominatrixes de pés quebrados - trocada em questão de segundos pela maravilha de perder uns quilos mais. A fragilidade em se dizer feliz e que não resiste a um par de segundos, porque comparada com a vizinha do lado. Especialmente se a competição diante da moça mais bonita for uma vertente principal do enredo, conseqüência direta de a aparência tomar o lugar da potência.

Muita Calma Nessa HoraCom um pouco mais de destreza - personagens bem construídos e relacionados entre si - esse esboço naïf poderia ter um impacto melhor, sumiriam talagadas de plástico que vão dar na superfície do filme. Um ser mais cético consegue lamber a ferida primitiva da trupe, atormentado pelo reducionismo que não engata a quinta marcha - a contenção dos sentidos, a previsibilidade de tudo. Criaturas que correm em disparada, gritam independência, alternam estados entre infância e adolescência, que confirmam a tese de que as fases da vida se misturam, não se separam tão só pela cronologia. Edgar Morin encheria as baguetes de queijo ao perceber a jogada da moça que se diz adulta mas se quebra em várias, bebê sem docinho, ao ser contrariada. Visando a um público específico, Muita Calma Nessa Hora agradará a faixas etárias distintas, provavelmente por mexer na espinha dorsal de um drama maior: essa cava depressão que impede ser furado o círculo e deixar partir o rebanho sem necessariamente se fazer parte dele.

Dezembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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